Luciano Gomes Filippo: “Pedro Nava possuía uma cultura que é raro de se acumular em uma só vida”

O estudo da alimentação no Brasil possui dois grandes pilares: o primeiro é o folclorista, já não tão conhecido nos dias de hoje: Luís da Câmara Cascudo; o segundo é famoso antropólogo nacional, o pernambucano Gilberto Freyre (Luciano Gomes Filippo em entrevista ao Blog da Ateliê)

Luciano Gomes Filippo, autor de ‘Baú de Receitas – História, Sociologia e Antropologia da Alimentação na Obra de Pedro Nava

A Ateliê Editorial publicou a obra Baú de Receitas – História, Sociologia e Antropologia da Alimentação na Obra de Pedro Nava, escrita por Luciano Gomes Filippo (Clique aqui). O livro é resultado da interseção da obra memorialística de Pedro Nava, à qual o título referencia e homenageia, com temas históricos, sociológicos e antropológicos que constituem a alimentação no Brasil. A partir das descrições detalhistas e sensoriais de Nava presentes em obras como Baú de OssosBeira-Mar e Chão de Ferro e de uma preciosa bibliografia teórica acerca da história da alimentação e da formação do Brasil, Luciano Filippo esmiúça a origem de pratos nacionais, explica hábitos alimentares ancestrais e recentes, além de desvendar para o leitor algumas iguarias regionais inexploradas, exaltando o valor da cozinha brasileira e a importância de sua investigação.

Advogado, mestre e doutor pela Universidade Panthéon-Assas, Paris 2, Luciano concedeu uma entrevista para o Blog da Ateliê e conversou sobre o processo de pesquisa e de escrita do livro, assim com sua admiração pelo escritor Pedro Nava (confira as obras de Pedro Nava na Ateliê Editorial).

Leia a entrevista abaixo:

Capa do livro

Blog da Ateliê: Poderia contar como surgiu a ideia do livro? 

Luciano Gomes Filippo: Sou advogado há quase 20 anos. Fora da advocacia, meus hobbies são a literatura e a culinária. Ao conhecer a obra de Nava, vi que ele dedicava muita atenção a diversos pratos, hábitos culinários, bebidas antigas etc. E a descrição que ele faz disso tudo é de uma beleza literária incrível. Quando li sua obra (são sete volumes ao todo) pela segunda vez, já tinha anotado todos os trechos em que ele trata desse assunto. Resolvi colocar esse material no Word e já deu quase 10 páginas. Daí pensei em analisar esses trechos sob a ótica da história, antropologia e sociologia da alimentação, o que resultou num livro didático sob uma moldura literária. A partir disso fiz uma imersão em tudo que encontrei sobre o assunto, inclusive em outros idiomas. Foi assim que o livro surgiu.

BA: Como foi a realização da pesquisa, no segmento da sociologia e antropogeografia? 

LGF: Não é fácil achar livros sobre o assunto. Há muita coisa antiga, principalmente livros escritos por viajantes ingleses, franceses e portugueses. Do ponto de vista do autoconhecimento, para mim foi uma grata surpresa. Nunca havia lido nada sobre a matéria.

Se prestarmos atenção nos grandes brasilianistas, vamos notar que eles explicam o Brasil especialmente sob o ponto de vista da mistura racial, do clima tropical e da psicologia formada pelo tripé que representa nossa cultura (índios, escravos e portugueses). Poucos dedicam atenção ao aspecto alimentar na formação cultural, social e econômica do país. Por exemplo: quanto à  formação física da população e sua projeção para gerações futuras (eugenia), quais os impactos gerados pelos reiterados jejuns impostos pela Igreja Católica? Há alguma razão alimentar que pode ser considerada na explicação da superioridade econômica do Estado de São Paulo? E no atraso das regiões do Nordeste? Certamente que sim, mas aí o leitor terá que ler o livro para entender.

Quanto à influência da alimentação na antropogeografia, naturalmente, são lições trazidas pelos antropólogos. Alguns deles (principalmente da escola americana) dizem que as necessidades alimentares são elementos essenciais na fixação das populações pelo globo terrestre. Por exemplo, regiões ricas em sal foram amplamente procuradas para fins de habitação. Nesses locais, populações inteiras se instalaram permanentemente. A necessidade do sal para o funcionamento do organismo é básica e estudos apontam que a humanidade em geral, considerando a intensidade do fenômeno auto regulatório da sudorese, necessita de grande reposição de sais minerais. Então o estudo da distribuição das populações nas áreas que conhecemos hoje deve levar em consideração algumas necessidades alimentares que não são tão intuitivas. Esse tipo de análise se enquadra no que se conhece como antropogeografia alimentar. 

BA: Como surgiu a sua admiração pelo trabalho literário de Pedro Nava? 

LGF: Li pela primeira vez o nome de Nava na obra A Alma do Tempo, de Afonso Arinos de Melo Franco. Eram muito amigos. Daí uma vez vi numa livraria o primeiro volume da obra de Nava – Baú de Ossos – e comprei. Ficou um tempo na prateleira e um dia decidi ler. Foi uma avalanche, achei incrível e depois li todos os volumes na sequência. Dali pra frente passou a ser a obra da minha vida, aquela que releio até hoje sem cansar.

Pedro Nava possuía uma cultura que é raro de se acumular em uma só vida. Exibia um estilo singular de escrita e se valia muito frequentemente de criações na língua portuguesa para manifestar sua criatividade. Usava uma linguagem provocativa e sensual, mas sem ser vulgar. Suas histórias tinham sabor. Trechos com profunda análise psicológica de situações e personagens demonstram que Nava conhecia como poucos o espírito do ser humano. Tudo isso dá à obra um valor que, para mim, não foi até hoje superada por nenhuma outra das poucas que conheço.

Pedro Nava

BA: Quais foram os suas principais referência no estudo da alimentação no Brasil, assim como na transformação social do país? 

LFG: O estudo da alimentação no Brasil possui dois grandes pilares: o primeiro é o folclorista, já não tão conhecido nos dias de hoje: Luís da Câmara Cascudo; o segundo é famoso antropólogo nacional, o pernambucano Gilberto Freyre. A principal obra de Cascudo na área é o livro História da Alimentação no Brasil. Aqui eu percebi que onde para mim só havia diversão (culinária sempre foi meu hobby), havia ciência, numa dimensão de profundidade que eu não imaginava. Essa obra despertou grande interesse meu, em especial porque nela encontrei explicações sobre questões alimentares abordadas de maneira lúdica e literária na obra de Nava. Por exemplo, os fornos subterrâneos – que Nava descobriu em festas de São João promovidas em Juiz de Fora, para assar abóboras recheadas com rapadura e vinho do Porto – eram instrumentos já utilizados há séculos pelos indígenas (iapuna), mas não só: os antropólogos americanos os conheciam como earth oven e os alemães como Erdofen.

Quanto à Freyre, não há muito o que dizer que já não tenha sido dito. Sua obra-prima em forma de trilogia – Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso – constitui a mais feliz união entre o estudo de grande valor científico e o livro que se degusta. Nela, o leitor encontra a mais rigorosa investigação e inigualável pesquisa bibliográfica e, ao mesmo tempo, o prazer de uma leitura que não é chata e enfadonha, pelo contrário, a imersão é feita com deleite. Freyre analisa a formação cultural, social e econômica do Brasil também sob o aspecto dietético, nisso constituindo uma das grandes diferenciações em relação a outros antropólogos. Sua contribuição foi riquíssima.

Por isso, digo que essas são as duas fundações do estudo da alimentação no Brasil.

Leia cinco trechos da obra:

CACHAÇA

As conversas, teorias, descrições e relatos de Pedro Nava sobre a cachaça constituem um verdadeiro passeio pela história dessa bebida, a mais nacional de todas. Percebe-se também a predileção do autor pela bebida, que – dentre as alcoólicas e não alcoólicas – é uma das mais mencionadas, perdendo apenas para o café.

QUEIJO CURTIDO NA CERVEJA

A citação da iguaria preferida de Halfeld não é da mais agradáveis na obra de Pedro Nava, pelo contrário, causa até certa repulsa. Mas ela se insere num contexto em que o autor descreve a incrível adaptação que o alemão passou para se adequar ao território brasileiro de meados do século XIX, acostumando-se à dureza de uma vida sem muitos confortos, principalmente durante a preparação do Relatório.

FEIJOADA É PRATO NACIONAL

Pedro Nava diz que a feijoada possui o mesmo valor da língua, da religião, da estrutura jurídica e da unidade nacional. Quis dizer que, em todos os cantos onde se fala a língua portuguesa, onde existe uma igreja ou capela, em que as pessoas e instituições devem respeito à mesma Constituição, serve-se a feijoada nacional.

FAROFA

A menção que Nava faz de “Farofa embolada na hora” diz respeito à preparação da farofa na hora; mas o prato a que o autor se refere é a farofa d’água, também conhecida como farofa de bolão, dado o tamanho dos grãos.

QUINDIM

Para Pedro Nava, o quindim tem sua origem no ovo mole de Aveiro. O ovo mole de Aveiro é um doce típico da região que vai no nome, que fica no litoral de Portugal, entre o Porto e Coimbra. É mais uma das invenções – à base de açúcar, água e gema de ovo – provenientes de conventos portugueses.

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