Resenhas

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Quando não há mais sujeito e objeto

Renato Tardivo*   Viagem a um Deserto Interior é o mais recente livro de Leila Guenther. Seus poemas e microcontos agrupam-se em cinco seções: “Paisagens de Dentro”, “O Deserto Alheio”, “Castelo de Areia”, “Um Jardim de Pedra” e “A Possibilidade de Oásis”. Nota-se, portanto, uma (bem-sucedida) intenção narrativa oferecendo de antemão continente às narrativas do livro. Não é aleatório que o “espaço” seja o tema mais relevante da obra; aliás, ele está indicado em diversas palavras-chave: “viagem”, “deserto”, “interior”, “paisagens”, “castelo”, “jardim”, “oásis”. Mas, se há deslocamento do interior de si para o interior do outro, da fragilidade da areia…

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Está Querendo Ser Meu Analista?

Renato Tardivo   Como além de escritor sou psicanalista com atuação clínica, escuto com alguma frequência comentários assim: “A clínica deve ser um rico material para a sua ficção…”; ou perguntas do tipo: “Você se inspira em seus pacientes para criar suas personagens?”. Vamos refletir a respeito. Acredito na proximidade entre literatura e psicanálise. Quem já leu alguma coisa do Freud há de concordar que sua escrita não é alheia à literatura, tanto do ponto de vista do estilo quanto do conteúdo. Assim como outros psicanalistas, vislumbro maior parentesco da psicanálise com as artes e a literatura do que, por…

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O Nheengatu que dá barato

José Ribamar Bessa Freire | Diário do Amazonas | 25 de maio de 2014 Tinha cara de bebê chorão. Morava na Ilha do Governador, no Rio. Não lembro mais o nome dele. Agnaldo ou Agnando, uma coisa assim, mas era conhecido como Pindá. Como qualquer vendedor de drogas em porta de escola, percorria diariamente universidades para abastecer a clientela, cujos vícios e gostos conhecia muito bem. Na UERJ, se esgueirava pelos corredores, qual felino de mansa pisada. Ia de sala em sala, levando a mercadoria. Silencioso e discreto, só abordava os consumidores potenciais sem presença de testemunhas. Um belo dia, sumiu. Dizem que…

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Robert Creeley

André Caramuru Aubert | Jornal Rascunho | Maio de 2014 O poeta norte-americano Robert Creeley (1926-2005) é, entre seus conterrâneos e contemporâneos, um dos mais conhecidos (ou menos desconhecidos) no Brasil. Além da qualidade de sua obra, talvez tenha ajudado, para isso, o fato de Creeley ter estado em São Paulo e conhecido alguns de nossos poetas. O fato é que ele deixou por aqui alguns admiradores importantes, como Ruy Vasconcelos e, principalmente, Régis Bonvicino, editor e tradutor de uma excelente coletânea brasileira (A UM, Poemas. Ed. bilíngue, Ateliê Editorial, 1997). Ainda assim, diante de tudo o que Robert Creeley produziu, o que…

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O poder transformador dos livros

Vivian Nani Ayres | Brasileiros | Abril de 2014 Como se deu a publicação e difusão de livros comunistas no Brasil e na França  Os livros fazem revoluções? Podem existir muitos protestos diante dessa pergunta, mas não se pode negar que uma das principais armas contra as ideias que ousaram questionar o status quo foi a perseguição aos livros considerados “subversivos”. É difícil encontrar alguém que conteste o poder transformador dos livros. Mesmo aqueles que só têm contato com esse objeto em sua esfera privada sabem que ao fecharem um livro depois da leitura encontram diante do espelho uma pessoa diferente….

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O Som da Imagem

Oliviero Pluviano | Carta Capital | 7 de maio de 2014 RARAMENTE pensamos na morte. Existe um antídoto que nos impede de lembrar a todo instante que tudo acaba, que nascemos de un polvo (como os espanhóis chamam o momento da geração) e fatalmente voltaremos a ser poeira. É a mesma defesa psicológica a impedir que nos aterrorize nas noites estreladas a nossa condição de infinitésimos habitantes da Terra com os corpos celestes. Quem sabe esse remédio milagroso se chame vida? A morte dos outros passa perto de nós todos os dias: quem nunca viu um motoboy agonizando no asfalto em uma…

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Perda Reconstruída

Renato Tardivo O título da coletânea de contos de Elisa Nazarian, Bilhete Seco, inicialmente me chamou a atenção por dois motivos. O primeiro: ocorreu-me o conto “O Ventre Seco”, de Raduan Nassar, texto colérico que diz da relação do narrador com duas mulheres importantes de sua vida. O segundo: “bilhete seco”, se não chega a ser um paradoxo, causa alguma estranheza – bilhetes são molhados por excelência. Bem, como não raro ocorre, eu poderia me desfazer dessas impressões ao fim da leitura. Mas, ao terminar o livro, foram justamente essas associações que me vieram, evidentemente transformadas por – e acrescidas…

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Valéry e Nerval: o eu inesgotável

Felipe Fortuna | Valor Econômico | 04 de abril de 2014 Dois lançamentos permitem novas incursões na obra dos dois poetas franceses bem como no trabalho de tradução de poesia para o português.   As numerosas diferenças entre Gérard de Nerval (1808-1855) e Paul Valéry (1871-1945) não são apenas as da cronologia, mas sobretudo de concepção da obra literária. Para o escritor de Les Filles Du Feu (1854), os símbolos do hermetismo – saturados de mensagens esotéricas e de vigoroso discurso místico – se transfiguravam em literatura. Já para o escritor de Charmes (1926), disciplina e rigor deveriam ser forças simultâneas na construção da prosa e…

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Chuva de dúvidas

Bruno Molinero | Folha de São Paulo | 29 de março de 2014 Um rato vivia embaixo de um celeiro e se alimentava de restos de comida que caíam por um buraquinho no chão. Certo dia, ele decidiu aumentar o tamanho do furo. Um camponês, porém, percebeu o grande buraco e decidiu tapá-lo. Essa é uma das histórias que o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) contava para crianças que estudavam na escola que ele mantinha em sua propriedade. Os textos agora estão reunidos em Contos da Nova Cartilha – Segundo Livro de Leitura, que tem também um outro volume a ser lançado….

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Os Dois Lados da Escuta

Renato Tardivo Ninfomaníaca (volumes I e II), de Lars Von Trier, é uma obra prima necessária e, ao mesmo tempo, sintomática dos dias atuais. Poucos conseguem, como ele, contar bem uma história ao cutucar com força nossas feridas, deixando estrias de sangue na pele – do corpo e da tela. No primeiro filme, uma mulher, Joe, é encontrada na rua com sinais de espancamento por um homem mais velho, Seligman. Ele a leva para a sua casa e, mais que abrigo e calor, lhe oferece a escuta. Joe trata de reconstruir sua história, tendo Seligman (e o espectador) como testemunha….