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Os Dois Lados da Escuta

Renato Tardivo

Ninfomaníaca, de Lars Von Trier

Ninfomaníaca (volumes I e II), de Lars Von Trier, é uma obra prima necessária e, ao mesmo tempo, sintomática dos dias atuais. Poucos conseguem, como ele, contar bem uma história ao cutucar com força nossas feridas, deixando estrias de sangue na pele – do corpo e da tela.

No primeiro filme, uma mulher, Joe, é encontrada na rua com sinais de espancamento por um homem mais velho, Seligman. Ele a leva para a sua casa e, mais que abrigo e calor, lhe oferece a escuta. Joe trata de reconstruir sua história, tendo Seligman (e o espectador) como testemunha.

O filme alterna o presente, em que Joe conta a história para Seligman em um dos quartos da casa dele, e o passado rememorado em flashbacks. Joe retoma a infância, a descoberta da sexualidade, as primeiras relações, a compulsão sexual na juventude, o reencontro com o primeiro homem.

O volume I termina em aberto, revelando cenas do II nos créditos. A busca incessante por prazer de Joe encontra, ao fim da primeira parte, o esgotamento. E tudo indica que a busca, no limite impossível, se voltará, no volume II, para o seu corpo e potencializará sua degradação.

O equilíbrio entre o tempo da ação e os flasbacks, no volume I, tende à perfeição. Mas, sendo um filme inacabado, há menos riscos. No entanto, as chances de a história se perder, sobretudo por uma possível banalização das cenas chocantes (como talvez tenha ocorrido em Anticristo, do mesmo diretor), não seriam pequenas no volume II.

Não é o que ocorre: a continuação é simplesmente sublime.

Aspectos que ficam em aberto na parte anterior são explorados: a relação (transferencial) entre Joe e Seligman, também ele um ser faltante, o mergulho radical de Joe nas perversões, sexuais e do capital (nesse sentido, o filme lembra O Cheiro do Ralo, produção nacional de 2005 dirigida por Heitor Dhália), sua inadequação às instituições e normas vigentes, as (outras) regras dentro das quais ela pode (incestuosamente) ser mãe.

Ninfomaníaca não é um tratado sobre perversões, nem um raio x da subjetividade de Joe. O filme, na figura da protagonista, é uma metáfora perfeita – e toda metáfora perfeita é, também, um paradoxo – das modalidades de vínculos que, mediados pelo chicote, estabelecemos na contemporaneidade: da cegueira de si e do outro, da destrutividade de todos.

Lars Von Trier, munido de sua conhecida câmera na mão, dos cortes dentro do plano, aspectos finamente trabalhados mas que conferem um caráter documental e despojado à narrativa fílmica, retoma eventos do volume I e os resolve de modo surpreendente. Mais ainda: o volume II, por projeto uma continuação, traz a temática da continuidade – e seus limites – no próprio enredo. Assim, se o filme não se perde na banalização da violência, tampouco se perde na redenção das personagens: a arma não disparar uma vez (desejo inconsciente?) não significa que ela não possa disparar depois.

De um lado da escuta – e do outro.

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Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Renato Tardivo é mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte pela USP e escritor. Atua na interface entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. É professor universitário e escreveu os livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras), e o ensaio Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).

 

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