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O Lugar Mais Longe da Morte

Por: Renato Tardivo*

Museu da Infância Eterna, de Miguel Sanches Neto, reúne crônicas escritas entre 2003 e 2011. Como indica o título, o tema da infância, presentificado sobretudo nas memórias do cronista acerca de seus primeiros anos de vida e em sua experiência com os filhos, atravessa a coletânea.

De início, chama atenção a confluência entre o aspecto datado que, via de regra, marca o formato da crônica e a mistura de tempos que, liricamente, desenha a infância. Talvez por isso, alguns textos passem por excelentes contos. Lembro-me de ter experimentado algo parecido lendo as crônicas semanais de Carlos Heitor Cony.

Com efeito, “o escritor escolhe as palavras marcantes”, escreve Sanches Neto, marcando as diferenças entre as palavras utilizadas por seus pares e pelo cientista, pelo político, pelos apaixonados e pelo diplomata. Diferentemente destes, cuja linguagem, atendendo a demandas preestabelecidas, resulta esvaziada de sentido, o escritor aprende “seu abecê sempre pela via torta”, exercendo, assim, “uma fidelidade erótica à infância”.

Não é aleatório que alguns textos sejam envoltos por uma atmosfera onírica, quando não são expressão literal de um sonho, mas do qual se acorda para constatar que “aquelas pessoas passaram, nós mesmos, minha mulher e eu, já não somos como nas fotos. O mundo em que vivíamos morreu, legando-nos frágeis sinais”. Aí está a potência dessas crônicas que, como na definição de Roland Barthes a respeito da fotografia, soam “imagem viva de uma coisa morta”.

A esse propósito, a seguinte passagem pode ser lida como metáfora do livro: “Um caminho me levava ao passado, o outro me devolvia ao presente. Dividido entre os dois, sofria novo drama, saber a qual deles eu pertencia”. Haverá resposta para esse dilema? O cronista confessa que, na época em que sofria esse drama, começou a escrever. E, assim, passou a dar voz a esse sofrimento para encaminhá-lo transformado.

Eis o acervo desse museu: reeditar o drama que nos marca desde o nascimento por meio de tonalidades diferentes. Temos, aqui, um desfile de representações do que ficou para trás, e que nos impele a seguir. Afinal, “a infância […] é o lugar mais longe da morte aonde podemos chegar”. 

Conheça outros livros de Miguel Sanches Neto

*Psicanalista e escritor. Professor colaborador do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros, do ensaio Porvir que Vem Antes de Tudo (Ateliê/Fapesp), da coletânea de contos Silente (7Letras) e do romance No Instante do Céu (Reformatório).

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