“Aproveitei o resto do último dia para vagar outra vez pelo deserto” – Leia um trecho da obra ‘A Mão do Deserto’, de Paulo Franchetti

Estrada do deserto do Atacama (Foto de Paulo Franchetti)

“Ao planejar a viagem, eu só tinha desejado uma coisa: ficar sozinho, com a minha moto, a maior parte do tempo”. Este foi o mote de Paulo Franchetti e que deu origem ao livro A Mão do Deserto, publicado pela Ateliê Editorial. De forma literária e de um relato preciso desde o planejamento da viagem, passando pelo trajeto de 11 mil quilômetros, até o final da jornada, o autor nos leva junto na garupa em uma narrativa imersiva e emocional, colaborando para um itinerário de espaço e tempo, do humano e máquina, da imensidão da paisagem da América do Sul, de um estrangeiro em busca de um desafio a duas rodas. Confira mais sobre a obra no site da Ateliê Editorial (Clique aqui).

Estrada do Andes (Foto de Paulo Franchetti)

Leia um trecho da obra:

Aproveitei o resto do último dia para vagar outra vez pelo deserto. Quando era jovem, dediquei-me por algum tempo à prática da meditação. O que então me ensinaram era que eu precisava esvaziar a mente. Parar o pensamento, concentrar-me na respiração. O mais perto que cheguei desse objetivo foi pela redução da consciência ao ruído do ar entrando e saindo dos pulmões. Ou entoando o mesmo mantra monótono, tornado automático pela repetição continuada. Mesmo assim, nos estágios iniciais, muitas frases surgiram sem que eu soubesse de onde. Fragmentos de conversas de outras pessoas, talvez ouvidos e guardados ao longo de um dia desatento, e o tormento da livre associação, quando palavras indesejadas apontavam para algo que não parecia inteiramente visível. Quem fala?, era uma pergunta que surgia, mas que eu tinha de evitar. Depois, ultrapassado esse portal de teste, reinava solitário o vaivém do ar no seu trajeto das narinas aos pulmões. Até ser interrompido por um descuido, uma intromissão indesejada de alguma lembrança ou preocupação. Então era preciso recomeçar.

Andar de moto me pareceu uma experiência mais próxima do que eu tinha vivido na meditação. O ruído do motor embala o pensamento e o faz finalmente dormitar. Então somente o ouvido desperto o segue, a mão o estimula e controla, a voz interior o imita. Sobrevém depois um equilíbrio estranho entre quietação e movimento, olhar externo e introspecção, e por instantes mais longos ou mais curtos nunca se sabe ao certo, apaga-se a conversa interior.

Na Mão do Deserto (Foto de Paulo Franchetti)

Na obra, Franchetti aborda a sua aventura solitária, sobre uma motocicleta, até o Atacama, além de ser uma vontade própria de desbravar, também, o deserto íntimo. “Eu tinha idealizado a viagem para que fosse também (ou principalmente) uma viagem interior”, o que prova que não é apenas um livro de viagem, mas a evocação das memórias junto às instigações que despertam as histórias de um motociclista entre as maravilhas das paisagens aos reveses enfrentados na viagem.

Na Mão do Deserto (Foto de Paulo Franchetti)

A Mão do Deserto é um livro GPS com destino traçado, mas de percursos vislumbrantes de um amante da literatura e da motocicleta. O leitor é conduzido com celeridade narrativa, mas nunca ultrapassando a boa leitura, entrando de vez na história, viajando pelos lugares monumentais, conhecendo personagens memoráveis e relatos emotivos, combinando, enfim, um ponto de encontro com o autor.

Na Mão do Deserto (Foto de Paulo Franchetti)

O AUTOR

Paulo Franchetti foi professor titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp e presidente da editora da mesma universidade por muitos anos. Publicou pela Ateliê Editorial os livros de estudos literários: Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa e Crise em Crise – Notas sobre Poesia e Crítica no Brasil Contemporâneo. Publicou também o livro de ficção O Sangue dos Dias Transparentes e A Mão do Deserto (memória de viagem), além dos livros de poesia: Deste Lugar,  Memória Futura, ente outros. Seu livro de haicais, Oeste, representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a coleção Clássicos Ateliê organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro, Iracema, O Cortiço, A Cidade e as Serras, Clepsidra e Esaú e Jacó.

Paulo Franchetti

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