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ENTREVISTA: organizadores de ‘A Carta de Pero Vaz de Caminha’ falam sobre a edição da Ateliê Editorial: “O leitor é convidado a se colocar diante da cena do registro da carta, sendo apresentado a termos e expressões quinhentistas”

O objetivo da publicação de novas edições de um texto tão importante para a história do Brasil é principalmente atingir novos leitores, que ainda não foram apresentados a esse documento, mas também relembrar os que já o conhecem das possibilidades de estudos paleográficos, linguísticos e históricos, dentre outros, que a própria Carta propõe”.

Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira

A Ateliê Editorial publica a obra A Carta de Pero Vaz de Caminha. O exemplar, que faz parte da Coleção Clássicos Ateliê, inclui introdução, notas e estabelecimento de texto realizados pelos pesquisadores e professores Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira.

Esta edição, em especial, apresenta duas versões da Carta, uma modernizada e outra semidiplomática. A versão modernizada permite conhecer o texto sem as dificuldades linguísticas do português da época, seja por atualizar a forma, seja por recorrer a notas explicativas. A versão semidiplomática permite ler, em tipo impresso, uma transcrição que reproduz muito de perto as características gráficas e linguísticas do manuscrito. Leia um trecho aqui.

Pero Vaz de Caminha

Pero Vaz de Caminha nasceu por volta de 1450 no Porto, Portugal, filho de cavaleiro do Duque de Bragança. Foi mestre da balança da Casa da Moeda, ocupando o cargo de escrivão e tesoureiro. Além de escrivão, foi vereador da cidade do Porto, em 1497. Casou–se com Dona Catarina e com ela teve uma filha: Isabel de Caminha. Em março de 1500, acompanhou a frota de Pedro Álvares Cabral como escrivão-mor. Quando chegaram ao Brasil em 22 de abril de 1500, ele escreveu um documento relatando para o Rei Dom Manuel I as impressões das terras encontradas. Esse relato ficou conhecido como A Carta de Pero Vaz de Caminha. Ao deixarem o Brasil, seguem rumo às Índias, onde morre numa batalha nas feitorias portuguesas que já estavam instaladas na Índia. Faleceu aos cinquenta anos, em Calicute, em 15 de dezembro de 1500.

Em uma entrevista exclusiva para a Ateliê Editorial, os organizadores Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira comentaram sobre a ideia de publicar a Carta para a Coleção Clássicos Ateliê, explicaram o motivo de trazer para os leitores as versões modernizada e semidiplomática, assim como a importância da leitura atual do texto de Pero Vaz de Caminha. Confira abaixo:

Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira – organizadores de A Carta de Pero Vaz de Caminha, da Coleção Clássicos Ateliê

PERGUNTA: Como surgiu a ideia de publicar A Carta de Pero Vaz de Caminha na coleção Clássicos Ateliê?

RESPOSTA: Nas aulas de filologia na Universidade de São Paulo, sempre colocamos o dilema que era e é conhecer a Carta de Caminha, não só pelo português de época, mas, especialmente, pela transcrição do texto do autor vazado em letra gótica cursiva de difícil compreensão. Dessa forma, a Carta sempre foi muito emblemática; desmembrá-la, conhecê-la era um desafio para nós, filólogos e professores de português. Esse desafio concretizou-se com o convite feito pelo Prof. Dr. José de Paula Ramos Jr, coordenador da coleção Clássicos Ateliê, para que fizéssemos uma edição desse texto para a coleção.

PERGUNTA: Por que publicar duas versões: modernizada e semidiplomática?

RESPOSTA: Até o presente momento, o texto de Pero Vaz de Caminha percorreu cinco centúrias. Se a literatura nacional de apenas um século já provoca inquietação nos leitores atuais, como esperar que se compreenda a escrita gótica cursiva e o arranjo singular de Caminha ao registrar, na carta dirigida ao rei de Portugal, palavras e frases no mais autêntico estilo português quinhentista?

Com o objetivo de aproximar os escritos antigos de leitores modernos, a Filologia utiliza técnicas editoriais para garantir que o texto que está sendo lido hoje seja o mais fiel possível ao original. Com esse cuidado, preparamos a edição semidiplomática, uma edição conservadora, que mantém os traços originais do texto, apresentando pequenas modificações, todas explicitadas nas normas preestabelecidas, que permitem ao leitor maior fluência na leitura (por exemplo, a transcrição da escrita com caracteres gráficos atuais, o desenvolvimento das abreviaturas e a adequação da separação vocabular). Acreditamos que esse tipo de edição, a princípio de interesse de um público mais especializado, pode também ser cotejada com a edição fac-similar do documento (disponível na internet), já que as linhas estão numeradas de acordo com o texto original, estimulando todos os tipos de leitores a desvendar o sistema de escrita utilizado por Caminha (as formas gráficas características desse sistema e as alografias do escrivão) e a flagrar as decisões do escrivão ao inserir e cortar trechos no exato momento do registro da escritura no papel.

Ainda assim, o leitor pode estranhar o vocabulário e mesmo a grafia de certas palavras. Para citar apenas dois exemplos desse possível estranhamento, destacamos que, por muito tempo, as duplas U – V e I – J (letras ramistas) foram utilizadas aleatoriamente como vogais e consoantes. A palavra “nauegaçom” (navegação) é um exemplo desse uso no texto de Caminha. Nessa mesma palavra, a terminação “om”, correspondente ao nosso ditongo nasal “ão”, varia para “am”, na palavra “capitam”, lembrando as palavras em espanhol “navegación” e “capitán”. Estudos sobre a história da língua portuguesa, em análises sincrônicas e diacrônicas, vêm descrevendo essas transformações ao longo do tempo. Aliás, a edição semidiplomática de textos das mais variadas datas é considerada a mais adequada para esse tipo de estudos linguísticos. Por isso, a presente publicação vem se juntar às raras transcrições semidiplomáticas conhecidas da  Carta de achamento do Brasil para colaborar com os pesquisadores dessa área do conhecimento.

Para tornar o texto ainda mais palatável, trabalhamos na edição modernizada, de forma a atualizar e explicar os termos que julgamos incompreensíveis aos leitores do presente, sem, entretanto, “rejuvenescer” o texto. O leitor é convidado a se colocar diante da cena do registro da carta, sendo apresentado a termos e expressões quinhentistas, alguns talvez exclusivos do escrivão, já transcritos para formas atuais, ou esclarecidos em notas de rodapé. Só assim o leitor pode apreciar naturalmente a sintaxe particular de Pero Vaz de Caminha.

PERGUNTA: O texto, de mais de quinhentos anos, é fundamental para o leitor atual, por quê?

RESPOSTA: É impressionante como a Carta de Pero Vaz de Caminha atrai a atenção dos leitores. Serão provavelmente centenas de edições já publicadas, no Brasil, a maioria modernizadas, mas a cada nova edição, percebe-se uma corrida por mais uma “versão” da nossa “certidão de nascimento”, talvez  para se conferir questões levantadas em edições anteriores. Uma questão paleográfica ainda não resolvida, por exemplo, refere-se à transcrição da seguinte palavra, logo na terceira linha da carta:

Esse verbo, modernizado para “escrevam”, já foi transcrito como “screpuam”, “spreuam” e “screuam”. Afinal, o escrivão teria abreviado a sílaba “cre” ou “pre”, nessa palavra? Como os especialistas em Paleografia vão eleger a transcrição mais precisa? 

Além de ser uma leitura encantadora, a carta faz parte do conteúdo do programa de Literatura brasileira no Ensino Médio, e compõe a lista de obras literárias exigidas por determinados vestibulares. Esta nossa publicação tem o mérito de transmitir o texto original da carta, por meio da edição semidiplomática, e uma modernização do texto que funciona como uma tradução, já que algumas palavras e expressões são praticamente incompreensíveis pelos leitores brasileiros atuais, mas sem contaminá-lo com modernices.

O objetivo da publicação de novas edições de um texto tão importante para a história do Brasil é principalmente atingir novos leitores, que ainda não foram apresentados a esse documento, mas também relembrar os que já o conhecem das possibilidades de estudos paleográficos, linguísticos e históricos, dentre outros, que a própria Carta propõe.

A parte introdutória desta publicação traz a história da transmissão da carta, desde que foi reencontrada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, em 1773, e ainda alguns endereços eletrônicos, respectivamente, com: 1) as imagens fac-similares da Carta; 2) a transcrição paleográfica e contemporânea disponibilizadas pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo; 3) a transcrição da carta realizada pelo oficial-mor da Torre do Tombo, João Pedro da Costa Basto, em 1876.

PERGUNTA: Poderiam apontar qual trecho da Carta é preferido por vocês?

“Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita; e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos, e eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem ao som da gaita; depois de dançarem, fez-lhe ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam, e folgavam muito;” (linhas 482 a 491)

Neste trecho, é possível testemunhar a alegria que marca o encontro entre os portugueses e os indígenas.

“E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por mandado do capitão-mor, com os quais ele se apartou e eu na companhia. E perguntou assim a todos, se nos parecia ser bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que agora nós podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram.” (linhas 370 a 380).

Nesta parte do texto, presenciamos o momento em que Cabral, sem saber, decide salvar a carta de Caminha dos naufrágios sofridos pela esquadra a caminho de Calecute.

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Marcelo Módolo é graduado em Letras pela Universidade de São Paulo; mestrado e doutorado em Filologia e Língua Portuguesa pela mesma Universidade. Pós-doutorado em linguística histórica e semântica cognitiva pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor de Filologia e Língua Portuguesa no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Presidente do Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo GEL/SP (2021-2023), editor da Revista do GEL (2020), também foi editor da Revista Estudos Linguísticos do GEL. Tem pesquisado e publicado nos seguintes temas: morfossintaxe do português de uma perspectiva cognitivo-funcionalista, filologia (crítica textual) de manuscritos modernos e divulgação científica.

Maria de Fátima Nunes Madeira – Graduada em Letras com licenciatura em português e inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Estudos relacionados à Filologia, Codicologia, Paleografia, Diplomática e História da Língua Portuguesa.

COLEÇÃO CLÁSSICOS ATELIÊ – As edições da Coleção Clássicos Ateliê, publicadas pela editora, são ilustradas e se propõem a revisitar os cânones da literatura de língua portuguesa, adicionando comentários de críticos especializados com textos introdutórios e notas. Conheça a coleção aqui.

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