Alvarenga Peixoto: uma poesia de “contradições esperadas”

Por Renata de Albuquerque

Em entrevista ao Blog Ateliê, o tradutor Caio Cesar Esteves de Souza, autor de Obras Poéticas de Alvarenga Peixoto, fala da descoberta de poemas inéditos do carioca que foi figura conhecida da Inconfidência Mineira mas cuja poesia tem sido pouco estudada no Brasil. O livro é fruto de seus estudos para o Mestrado – atualmente desenvolve seu doutorado em Romance Languages and Literatures na Harvard University (EUA). Souza, que já apresentou os resultados de suas pesquisas em diversos congressos no Brasil, Portugal, Itália, Polônia e EUA e tem uma coluna no Estado da Arte, do Estadão, defende que a obra de Alvarenga é, apesar de concisa (são apenas 40 poemas), complexa e multifacetada – tanto assim que os poemas foram usados tanto pela defesa quanto pela acusação no processo da Inconfidência. Essas características, segundo o estudioso, fazem dela um ótimo ponto de partida para o estuda da literatura do período. Leia abaixo a entrevista:

Há quem considere Alvarenga Peixoto um autor “menor” se colocado lado a lado com seus pares, como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Por que debruçar-se sobre a obra deste poeta do XVIII? O que despertou seu interesse?

Caio Cesar Esteves de Souza: Realmente, o Alvarenga Peixoto é considerado um autor “menor” do século XVIII justamente por conta de sua obra ser muito reduzida em número (apenas 34 poemas eram conhecidos até a publicação desta edição, que agora expande esse corpus para 40 textos) e por nunca ter publicado um livro de poesia em vida. Ao mesmo tempo, o próprio século XVIII é considerado por alguns estudiosos um período “menor” na história literária brasileira, uma espécie de entre-séculos, cuja função é apenas negar o dito “barroco” do século XVII ou antecipar o indianismo romântico do século XIX. E para outros estudiosos, sobretudo fora do Brasil, a literatura brasileira é uma literatura “menor” se comparada a outras, devendo ser entendida sempre como parte integrante de uma “literatura latino-americana” maior, escrita majoritariamente em espanhol.

Quando a gente coloca tudo isso em perspectiva, fica claro que a grandeza ou pequenez de qualquer autor e obra sempre diz mais sobre os pontos cegos dos críticos que se debruçam sobre eles do que sobre o próprio objeto de estudo. O meu interesse pelo Alvarenga Peixoto surgiu justamente do desinteresse dos outros estudiosos. Achei curioso que ninguém houvesse publicado um trabalho de fôlego sobre esses poemas desde 1960 – e ainda mais curioso que todos soubessem quem ele era sem nunca ter efetivamente lido sua poesia. Então, fui ler e notei que ela era boa. Foi a partir daí que decidi, em fins de 2014, que dedicaria alguns anos ao estudo desses poemas – para entendê-los melhor, mas também para entender melhor o silêncio dos nosso tempo sobre eles.

Em tendo estudado a obra de Alvarenga Peixoto, que argumentos podem ser colocados para (lembrando que foi inconfidente) “livrá-lo da acusação” de poeta menor?

CCES: Acho que não é necessário livrá-lo dessa acusação, porque ser produto de um poeta “menor” é justamente o que faz a obra atribuída a Alvarenga Peixoto ser tão interessante. Nesses 40 poemas, encontramos sonetos com temática amorosa; poemas elogiando as reformas de D. José I e de seu ministro, o Marquês de Pombal; outros poemas elogiando a rainha D. Maria I, que era oposta às reformas desenvolvidas por Pombal alguns anos antes; poemas sobre homens poderosos da colônia, produzindo uma tensão entra sua pátria (as Minas Gerais e, por extensão, o Brasil) e a sua nação (Portugal); poemas reafirmando a submissão brasileira a Portugal etc. Encontramos, nessa poesia atribuída a Alvarenga Peixoto, todas as contradições que esperamos encontrar ao estudar a segunda metade do século XVIII luso-brasileiro. É uma poesia que foi usada como prova de acusação contra o seu autor e, também, como parte de seu discurso de defesa no processo da inconfidência mineira. Eu honestamente acredito que a obra de Alvarenga Peixoto oferece o melhor conjunto de poemas para que o leitor perceba que as letras luso-brasileiras do século XVIII não podem ser facilmente reduzidas a meia dúzia de lemas árcades e a rótulos vazios como “barroco tardio” ou “pré-romantismo”. Ela é complexa, multifacetada, e resiste constantemente a esse tipo de caracterização. O fato de ser composta apenas por 40 poemas faz com que essa complexidade fique ainda mais evidente para o leitor. Acho que isso faz de Alvarenga Peixoto um excelente ponto de partida para o estudo do século XVIII luso-brasileiro.

 De que maneira o fato de Alvarenga Peixoto ter sido inconfidente impacta a obra dele e, além disso, a leitura que fazemos dela?

 CCES: Bom, aqui temos duas questões. O fato de Alvarenga Peixoto ter participado ativamente como um dos líderes do conjunto das reuniões que foi posteriormente chamado de Inconfidência Mineira, ou Conjuração de Minas, faz com que alguns leitores o imaginem como uma figura libertária, progressista, disposta a enfrentar o poder da metrópole por amor à pátria etc. Um nacionalista de uma nação que ainda não existia. Quando esses leitores se deparam com a sua poesia, ficam frustrados, porque não encontram nos poemas esse ideal que produziram em seu imaginário. A insuficiência, evidentemente, não é do poeta.

Boa parte da poesia atribuída a Alvarenga Peixoto foi composta antes de toda a questão política que culminou em seu degredo para Angola, onde viria a morrer. E a temática dos poemas nunca é explicitamente separatista. O que se nota – e quem apontou isso de forma consistente pela primeira vez, até onde tenho conhecimento, foi João Adolfo Hansen em um ensaio publicado em 2006 – é que em alguns poemas de Alvarenga Peixoto, como no “Canto Genetlíaco”, que fez ao batizado do filho de um poderoso das Minas Gerais, há uma tensão entre a origem de homens “valorosos” (nascidos no Brasil) e a sua subordinação à coroa portuguesa. Em outras palavras, é possível notarmos que a relação entre nação (Portugal) e pátria (Brasil), que fundamenta o processo da colonização brasileira, se apresenta como um problema, uma tensão pontual nessa poesia. Não é à toa que um fragmento de ode do Alvarenga Peixoto foi anexado às provas de acusação no processo da Inconfidência. Também não é gratuito que Alvarenga tenha escolhido anexar poemas em louvor à rainha D. Maria I ao discurso de seu advogado de defesa. Não devemos ler a poesia de Alvarenga Peixoto como uma “poesia inconfidente”; mas tampouco devemos nos furtar de perceber o aspecto político e contraditório de alguns desses versos – às vezes produzindo uma tensão entre colônia e metrópole, às vezes propondo a subordinação do Brasil a Portugal.

Como foi feito o trabalho de “garimpar” manuscritos e originais de Alvarenga Peixoto?

CCES: Como o Alvarenga Peixoto passou uma boa parte de sua vida em Portugal, quase todos os poemas que conhecemos dele estão registrados em livros manuscritos guardados em arquivos em Lisboa, Coimbra, Évora e Porto. Então, seguindo as instruções que Manuel Rodrigues Lapa, o último editor de Alvarenga Peixoto (1960) tinha deixado em seu livro, segui a Portugal para ler esses manuscritos e impressos. O que notei imediatamente é que a própria ideia de original não fazia sentido ali. Todos os textos estão registrados em vários escritos em cópias diversas preservados nesses arquivos. Não sabemos a partir de onde essas cópias foram feitas – se usavam manuscritos do autor, ou se a partir de performances orais esses copistas memorizavam os textos e depois os copiavam em papel. O contato com todos esses escritos me fez notar que, em vez de tentar comparar as várias versões desses poemas para imaginar o que teria sido a versão original, eu deveria inverter essa relação e valorizar cada uma dessas cópias como o que elas de fato são: fragmentos da História preservados em papel. A partir disso, produzi esta edição que é radicalmente diferente de todas as outras que foram feitas das obras poéticas de Alvarenga Peixoto. Em vez de esconder as incongruências, as dificuldades de leitura e os “acidentes” dos manuscritos, decidi trazê-los todos aos leitores, para que eles possam ter acesso a essa multiplicidade de vozes que se escondem no pó dos arquivos e que costumam ser apagadas em edições “definitivas” de obras completas.

Caio Cesar Esteves de Souza

Como foram descobertos os seis inéditos reunidos neste volume?

CCES: Essa descoberta foi quase um acidente de percurso. Após passar meses em Portugal revirando todos os livros manuscritos a que tive acesso, virando milhares de páginas manuscritas uma a uma na esperança de encontrar algum inédito, estava resignado à ideia de que não havia mais nenhum inédito preservado de Alvarenga Peixoto. Voltei ao Brasil, escrevi a minha dissertação e, poucos meses antes de ter que depositá-la, fui à Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP, para dar uma última olhada em uma coleção de manuscritos que estava catalogada de forma estranha. No catálogo, lia apenas “Flores do Parnaso [século XVIII]”, sem nenhuma descrição – isso já foi alterado, evidentemente. Chegando lá, me deparei com 5 livros de poemas manuscritos, com uma grafia do século XVIII. Então, decidi repetir o processo, olhando página por página de cada um dos cinco tomos, só para garantir que não haveria nada inédito ali. Parece história de pescador, mas os seis últimos poemas do último livro se intitulavam Galeria de Almeno. Eu já ia fechar o livro, pois não me interessava por nenhum Almeno, mas li ao lado a inscrição em francês “Autrement dit Alvarenga” [também conhecido como Alvarenga], com uma inscrição feita a lápis por Rubens Borba de Morais: “Peixoto”. Por muito pouco esses poemas não continuaram inéditos por mais alguns anos. Trabalho arquivístico sempre tem um quê de acaso nessas descobertas.

Foi feita alguma checagem de autenticidade para “comprovar” a autoria?

CCES: Foram feitas várias checagens, mas não com o sentido de comprovar autoria como geralmente se pensa. É pouquíssimo importante saber se o homem Alvarenga Peixoto efetivamente escreveu ou deixou de escrever um ou outro poema. Quase toda a poesia que lhe é atribuída não tem qualquer comprovação de autoria nesse sentido – e esse é o caso da maior parte dos poetas dessa época. Até muito recentemente, a autoria não era uma categoria tão fundamental para a produção, circulação e recepção de poesia como é hoje.

As questões que precisavam ser checadas eram várias; dentre elas: 1. esses poemas já foram publicados anteriormente? 2. Se sim, eles foram atribuídos a qual autor? 3. Há referências textuais internas que impeçam a leitura desses textos como atribuídos a Alvarenga Peixoto? Como não encontrei qualquer publicação anterior desses textos e não há qualquer passagem textual que tornasse inviável atribuí-los a Alvarenga Peixoto (por exemplo, uma referência a acontecimentos históricos posteriores à sua morte), não havia motivos para não acatar o que o manuscrito determinava como sua autoria.

Eu penso em Alvarenga Peixoto e qualquer outro autor anterior ao século XIX não como a mão que escreve, mas como a mão que é escrita pelos poemas. Se um manuscrito atribui determinado poema a determinado autor, ele produz esse autor a partir da reprodução do texto. Textos e escritos produzem autores, não o contrário.  

 Ler Alvarenga Peixoto no século XXI: quais são os desafios disso? E o que essa obra do XVIII diz a nós, no XXI?

 CCES: O principal desafio para ler Alvarenga Peixoto no século XXI é desnaturalizar o que pensamos que sabemos sobre essa poesia antes da leitura. É realmente nos aproximarmos desses textos abertos ao que eles tenham a dizer, e não tentando buscar ali o que já supomos que dirão. Outro desafio considerável é entendermos que a originalidade, que para nós é uma qualidade fundamental na poesia, não tem grande importância antes do século XIX. Um excelente poeta no século XVIII luso-brasileiro é aquele que sabe escrever poemas seguindo os lugares-comuns daquele gênero de poesia e superando todos os outros grandes poetas que se dedicaram ao mesmo gênero e aos mesmos lugares-comuns anteriormente. Escrever poesia era um jogo, em que você demonstra que é melhor poeta que os outros por saber seguir as regras com maior habilidade que os demais. Se o leitor quiser buscar originalidade ali como busca em poemas do século XX e XXI, não encontrará e pensará ser insuficiência da poesia o que na verdade é defeito de leitura.

Para que uma obra diga algo, é necessário que antes estejamos dispostos a ouvi-la. Não acho que os poemas de Alvarenga Peixoto necessariamente tenham qualquer tipo de mensagem aos leitores do século XXI. Mas o contato com eles, o processo de leitura atenta, cuidadosa e interessada, vai demonstrar a necessidade de entendermos esses poemas como um Outro. A poesia de Alvarenga Peixoto foi escrita por alguém (ou alguéns) de outro tempo, para outros leitores, seguindo outros critérios de composição e leitura. Uma vez que os leitores de hoje entendam isso, o próximo passo seria entender que eles também são Outros. Essa poesia produz os leitores do século XXI como outros em relação a si. O contato do leitor atual com textos para os quais ele não detém os pressupostos de interpretação faz com que ele tenha que aceitar a sua própria insuficiência e possa se ver como uma alteridade. E em um tempo de intolerância, negacionismo, estupidez e mediocridade como o nosso, a capacidade de lidar com aquilo que é outro e de entender que nós não somos a medida de todas as coisas me parece fundamental. A leitura das obras poéticas de Alvarenga Peixoto pode ser um bom ponto de partida para isso também.

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