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Sobre Espantalhos e Limões Espremidos: Farsas e Tragédias na reedição do livro Os Males do Tabaco e Outras Peças em um Ato

Paulo Maia*

O humor e a brevidade estão presentes nos oito textos desta reunião editorial de Os Males do Tabaco que chega agora à sua terceira edição (2001, 2003, 2019). Vemos aqui estudos cômicos de Tchekhov (cena, cenas monólogos, estudo dramático, peça e farsas) que em alguns casos evoluem para a tragédia cômica. É o caso da versão de 1902 da cena monólogo em um ato intitulada “Os Males do Tabaco”. Ivan Ivánovitch Niukhin é um melancólico bufão revoltado que, a mando da mulher, vem falar sobre os tais malefícios. De todo modo, uma conferência não passa de uma conferência. Preso às entranhas do cotidiano e da memória, acerta as contas com a própria vida numa tragédia cômica inundada pela digressão. Seu humor é claramente desesperado e trágico, e a profundidade do conflito existencial vem à tona misturada aos detalhes cotidianos mais corriqueiros e aparentemente insignificantes. Assim, entre o desejo de libertação e as panquecas, a genialidade do estilo tchekhoviano vai sendo costurada a cada digressão pela espera de uma conferência que nunca virá. A resignação e o enclausuramento da personagem tornam os elementos risíveis imediatamente aflitivos, pois nos reconhecemos como espantalhos. É certamente um dos clássicos maiores do escritor.

Já sua primeira versão, que abre a presente edição, atem-se à superfície cômica, sem grandes aprofundamentos existenciais. Apesar do argumento em torno de um conferencista que acaba por não fazer nenhuma conferência e mistura sua fala com assuntos diversos de sua vida pessoal, a real angústia perante aquilo que foi vivido e o desejo intenso por livrar-se da própria história é desenvolvido magistralmente apenas na segunda versão, na qual os males do tabaco revelam-se como os males da própria vida. Entre Márkel Iványtch Niúkhin e Ivan Ivánovitch Niukhin existe o abismo da confissão explícita e desnudada perante sua plateia.    

Bufão melancólico

Svetlovídov, do belíssimo estudo dramático O Canto do Cisne, também pode ser considerado como um bufão melancólico. O velho ator que, bêbado, dorme sentado no camarim após sua apresentação, não quer voltar para casa e enfrentar a solidão. Lembra-se da mulher pela qual era apaixonado, quando ela pediu que ele abandonasse o palco: Compreendi então que não existe nenhuma arte sagrada, que tudo é sonho e ilusão […] Interpretar os clássicos com seu ponto Iványtcha leva-o do êxtase às lágrimas : O vigor jorra de todas as minhas veias como um chafariz […] Não passo de um limão espremido, um picolé, um prego enferrujado […] Se rimos da sua desgraça, é um riso triste – ou, como tantas vezes presenciei nas plateias de Niukhin, um riso contido, tenso.

A peça em um ato O Urso encena uma situação humorada do credor que interrompe um luto de oito meses para cobrar a viúva da dívida deixada pelo falecido marido que, mesmo injusto e infiel, acaba por encerrar Popova num estado de ânimo tal que jurou não tirar o luto nem frequentar a sociedade até o dia do meu próprio enterro… Mas eis que a dívida torna-se paixão e a desavença, um prolongado beijo na boca.  A farsa em um ato O Pedido de Casamento parte da tentativa do excessivamente hipocondríaco Ivan Vassílievitch Lomov de casar com Natália Stepánovna, mas rapidamente revela adisputa entre famílias pela posse de terras e pela qualidade canina de seus animais. Após todo tipo de injúrias lançadas entre o pai de Natália e o futuro casal – Seu moleque! Seu fedelho! Rato velho – o matrimônio se efetua, mas sem dar trégua às polêmicas que percorrem toda farsa: Ora, e assim começa a felicidade conjugal! Champagne!           

No caso das Bodas, por exemplo, mesmo que o tema da corrupção acabe sendo o desfecho moral da cena em um ato, e que o noivo dê sinais claros de ter sido motivado por razões financeiras para casar, é o humor dinâmico das situações segue seu curso na festa de casamento através de tipos diversos, como o confeiteiro grego e o telegrafista. A mãe da noiva diz logo no início o quanto o novo marido da filha é inoportuno, e a festa aguarda a presença de um militar que dará mais nobreza ao evento – mas Revúnov – Karaúlov se mostra enfadonho ao descrever os detalhes técnicos da marinha.

A farsa O Jubileu trata do aniversário de quinze anos do Banco de Crédito Mútuo N. O diretor-presidente, na expectativa de receber os acionistas para a leitura de um discurso escrito por ele mesmo, acaba recebendo as reclamações de Nastássia Fiódorovna Mertchútkina sobre a demissão do marido de uma repartição médico- militar. Mas o conteúdo da reclamação não possui relação alguma com a responsabilidade do banco. No entanto, tal é a insistência de Mertchútkina que Chipútchin dá a ela o dinheiro reclamado para poder vê-la fora dali.        

Outra vez não vemos a densidade do conflito existencial angustiado presente na segunda versão de Os Males do Tabaco, O Canto do Cisne e também na farsa em um ato Trágico à Força. Todas possuem traços evidentes de humor, mas estes traços não parecem estar em primeiro plano. Pode-se dizer que, no caso das outras peças do livro, o humor é mais protagonista, ou seja, a comicidade parece ser mais importante que as tragédias existenciais humanas.

Paulo Maia como Niukhin

Trágico à Força talvez seja um bom meio termo. Ironicamente, o protagonista anuncia: Isso não é uma farsa, é uma tragédia! Ivan Ivánovitch Tolkatchov entra em cena ofegante, esgotado, carregando diversos objetos, e suplica a Muráchkin que lhe dê um revólver, pois não ficará entre os vivos. Diz Ivan: Sou um trapo, um palerma, um idiota! Por que é que eu vivo? Qual o objetivo? […] Para que este nunca acabar de sofrimentos físicos e morais? Que se possa ser mártir de uma ideia, isso eu compreendo, mas ser mártir de algo que nem o diabo sabe […] Para mim chega! O texto, aliás, caberia muito bem na boca de outro Ivan, o Niukhin de 1902. A farsa gira em torno das reclamações de Tolkatchov sobre o excesso de atividades que lhes são impostas, de modo que Muráchkin seria seu confidente e ombro amigo durante o desabafo do veranista. Mas eis que, no desfecho da peça, o próprio Muráchkin passa a pedir favores quando descobre o próximo destino do amigo. Revela-se, portanto, de modo bem humorado, dinâmico, verborrágico e aflitivo o quanto as pessoas usam as outras em prol dos próprios interesses disfarçando-os de favores pessoais: Não por obrigação, mas por amizade! […] A alma humana é sugada e Tolkatchov não aguenta mais: Monte em cima você também! Sirva-se! Esfole o homem! Dê-lhe o golpe de misericórdia! […] Tenho sede de sangue! 

* Paulo Maia é ator e baterista. Doutorando em filosofia, encena a segunda versão do monólogo Os Males do Tabaco desde 2015, tendo percorrido 11 casas até a finalização desta resenha, em 2019.              

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