Um brasileiro à procura de sua identidade

Aurora Bernardini*

A seguir, o Blog da Ateliê reproduz a resenha de Aurora Bernardini sobre O Língua para o número 30 da Revista Qorpus. Agradecemos a gentileza da revista em permitir o compartilhamento deste material:

Eromar Bomfim, autor do livro de que vamos falar, nasceu em Formosa do Rio Preto (BA). Filho de comerciantes, aos 13 anos de idade, mudou-se com a família para São Paulo. Estudou Letras na USP, com pós-graduação em literatura brasileira. Publicou com sucesso o romance O Olho da Rua, pela Nankin Editorial, em 2007, e Coisas do Diabo Contra, pela Ateliê Editorial, em 2013 e, agora, O Língua, também pela Ateliê Editorial, sua obra prima.

É justamente da união de coisas bem sabidas (bem vividas) e tramas bem imaginadas que nasce o encanto desse O Língua, que poderia se chamar Um brasileiro à procura de sua identidade, ou “ o primeiro brasileiro”, como quer Eromar. Ele explica, em trecho de carta pessoal do autor enviado à resenhista em maio de 2019:


“Os personagens são do século XVII, embora vivam até hoje como ancestrais que se manifestam aos líderes no ritual de Toré que existe nos nossos dias em núcleos caboclos no submédio São Francisco. Este, dos artifícios que usei , é esboçado no primeiro capítulo, norteado pela ideia de que na transformação há permanência.

Os personagens indígenas são tapuias do Nordeste, notadamente povos que habitavam a Bahia, no chamado “sertão de dentro”. Distinguiam-se dos povos tupis e tupinambás do litoral e foram chamados tapuias que significa “língua travada”. Falavam várias línguas, sendo o kiriri uma das mais amplas, possuindo subdivisões.

As batalhas no enredo são reais, mas a efabulação sobre como ocorreram é fictícia. A destruição do mocambo de Geremoabo, por exemplo, comandada por Fernão Carrilho, é real. Mas eu a narrei como imaginei, seguindo a psicologia de meus personagens. A geografia é real, mas com muitos nomes atualizados. Fauna e flora são típicas da região. Retratei-as segundo meu conhecimento e experiência, além de alguma pesquisa. Li obras da história colonial tradicional, teses universitárias, bem como obras etnográficas. Os gerais do Rio Preto, onde vivem meus narradores, eu conheço. Mas é importante ressaltar que meu personagem central, Leonel, é um mameluco. Não é mais índio, mas também não é branco. É o primeiro brasileiro. Foi pensando nele que fiz essa história. Meus narradores são fictícios, salvo Aleixo. Existiu um certo Aleixo, insubordinado, no século XVII. Reais são alguns dos personagens brancos, como padre Roland é Padre João de Barros. Deles aproveitei o papel que desempenharam na invasão, mas imaginei toda a trama que os envolve. O mesmo fiz com o militar Domingos Rodrigues Carvalho. Mas a nenhum deles dei voz. Apenas contracenam com meus personagens que são oriundos da camada sofrida da população.”


O eixo da trama são as caçadas que os homens brancos (leia-se: súditos do rei de Portugal) fazem a índios e negros fugidos, suas selvagerias e seus engodos, e a resistência (leia-se: fuga) desses, para escapar à submissão e à morte. Mas cada personagem tem sua história que é magistralmente contada por alguns dos protagonistas principais e da qual citaremos alguns exemplos. Um deles, o que começa a relatar nas primeiras páginas e volta a fazê-lo nas últimas, na sala do dono da casa, onde se reúnem os narradores, é uma mulher. A índia anaió, Ialna, que, mal chegada à puberdade, é violada pelo padre, membro da aldeia missionária e tem um filho, o mameluco Urutu, mais tarde batizado como Leonel pelo padre João de Barros, o jesuíta que o levou consigo, fugindo dos fazendeiros destruidores das aldeias dos padres, e que tem o dom de aprender várias línguas com a maior facilidade, daí ser chamado O Língua, e ter, muitas vezes, a função de intérprete. “Nunca mais vi esse rapaz andar com outros meninos, que eram mais desgarrados e varavam por aqueles brejos atrás de uma fruta, de um mel, de um passarinho. Tinha ficado muito diferente dos outros, os que desobedeciam às regras dos padres, e por isso viviam recebendo chicotadas deles” (BONFIM, 2018, p. 51), conta Ascuri, o indio anaió que “viu Urutu crescer e virar o que virou” (BONFIM, 2018, p. 35) e que vivia com duas mulheres, Cipassé e a bonita Yacui, mais tarde cobiçada pelo padre João.

“No mesmo dia que os padres deixaram São Francisco Xavier, os homens do grande sesmeiro Garcia entraram na aldeia… Os padres tinham ido embora. Vendo-se sozinhos, os sapoiás abandonaram as cabanas e caíram nos matos. Em pequenos grupos ou desgarrados, todos se dispersaram em rumos diferentes” (BONFIM, 2018, p. 60), conta Ascuri.

Outro indiozinho, que cresce na casa dos meninos índios na cidade de Salvador, onde os padres da Igreja o batizaram como Aleixo, relata: “Fiquei conhecido na cidade de Salvador e nos sertões. Na cidade conheci uns negros. De noite eles saíam, sorrateiros, da casa de seus senhores. Junto com eles, roubávamos artigos nos armazéns. Facões, enxadas, panos. Vinham outros e carregavam para os mocambos. Um dia fomos descobertos. Os negros apanharam até não poder mais. Me botaram na cadeia. Depois de uns dias fui degredado para a cidade do Rio de Janeiro por ordem do governador.” (BONFIM, 2018, p. 61). Aleixo consegue fugir e vai bater nas Minas Gerais, onde os povos estavam em luta contra os fazendeiros. Sobe, depois, para a Bahia, sempre sob ordens de prisão. Quando Fernão Carrilho, “o governador da horda de assassinos… que partia para matar negro como quem vai almoçar e que tinha gosto de matar tanto os negros tapanhuns como os índios da terra” (BONFIM, 2018, p. 62) foi para Canabrava, com ordem para retirar os melhores guerreiros para lutar contra Geremoabo, os padres assinalaram quatro dos seus. Eram três moritises e mais Leonel. Aleixo estava lá e ficou amigo de Leonel e, depois, os dois se irmanaram com Gabiroba, um mocambeiro que conseguira escapar. Aleixo vai lutar para destruir o quilombo de Geremoabo porque não tem outra saída, já que Fernão Carrilho tinha diploma legal para recrutar coercitivamente quem ele quisesse e ainda pesava sobre Aleixo um mandado de prisão; Leonel vai porque, por lei, os aldeamentos missionários eram obrigados a fornecer índios para guerrear ao lado das expedições militares contra outros índios (esta foi, aliás, a razão do assassinato do líder indígena Cristóvão, pois ele se negou a entregar seus cento e vinte guerreiros ao paulista Baião Parente, contratado para destruir povos indígenas). Gabiroba era um escravo fugido que havia se refugiado em Geremoabo.

Esta era a bandeira de Carrilho: “… Eu trago aqui regimento e poder de juntar nessa campanha, tanto brancos como pretos, negros da terra como vocês, e mulatos, e todo gênero de gente que seja capaz de jornada para destruir os mocambos de negros fugidos e salteadores em Geremoabo, e onde mais se encontrarem esses seminários de hereges e ateísta.” (BONFIM, 2018, p. 65). Só que, aos poucos, umas coisas ia pensando Aleixo, que iam entrando na sua cabeça e saindo, “como o rio que corre escondido por baixo das pedras: está ali e não está… Depois seriam os índios também, os perseguidos. O perseguidor é que não mudava: era sempre o branco, sedento de terras para seu gado, sedento de metais amarelos, sedento de pólvora do salitre, sedento de negros para o trabalho, sedento de índios para sua defesa, sedento do ventre das mulheres índias para seus haréns, sedento das meninas negras para gerar mais negro. E o índio que recusasse tinha o mesmo destino que o negro tinha: a morte debaixo dos olhos mudos do governador e do padre.” (BONFIM, 2018, p. 70).

Eromar Bomfim, fotografado por Hemerson Celtic

Depois do ataque aos negros fugidos, que é um dos momentos mais lancinantes do livro, encontram-se os três, Aleixo, Gabiroba e Leonel, feridos, mas ainda vivos, e decidem fugir da tropa e, após perambular sem rumo, vão em busca de outro mocambo, com gente. As aventuras se sucedem: suçuaranas, piabinhas, as sete moças virgens se banhando, com quem eles passam dias felizes (deixando-as grávidas da prole que irá repovoar Natuba). Até que eles encontram, às margens do rio Natuba, na Missão com o mesmo nome, o índio Cristóvão, com cento e vinte guerreiros aos quais se juntam, para resistir aos ataques dos brancos. Natuba é arrasada, Cristóvão é esquartejado, Aleixo é remetido à cadeia, Gabiroba o ajuda a evadir-se e Leonel é levado como intérprete a serviço de sua majestade. Novas fugas, até que Aleixo é comprado por um amo, para cultivo de suas hortas. Padres do Santo Ofício perseguindo Gabiroba, Leonel, em Salvador se entregando à bebida, Aleixo e Gabiroba, munidos de amuletos, fugindo para Rio Preto.

Agora a voz retorna de novo a Ialna que relata poeticamente suas vicissitudes, suas lutas, suas perdas, e o anseio que nunca a abandona de voltar a encontrar seu filho, enquanto ela também segue para o leito do Rio Preto. Lá se instalando decide que é a hora de reencontrar Urutu, é a hora que seu filho deixe o mundo do pai para voltar ao da mãe, “esse filho que foi a semente que produziu a sociedade do Brasil. Agora, a planta que cresce carrega o mesmo mal da semente. É por isso que até hoje estamos assim.” (BONFIM, 2018, p. 175). Incumbe Gabiroba, que é o dono da casa onde todos se encontram, e mais dois vizinhos, amigos de Gabiroba, de ir até Salvador e lhe trazer o filho de volta. Depois de muitas buscas acabam encontrando-o no Largo de Jesus. Preparam a viagem de volta que é empreendida com grande alegria. Iam passando pela Reserva Florestal de Marimbondo, lugar onde “dorme o espírito de muitos povos, e o ouvido atento ainda ouve suas vozes, indiferente a toda novidade desses tempos…” (BONFIM, 2018, p. 188) quando se deram conta que Leonel havia desaparecido.

“Quando eu fui levar a notícia para Ialna, eu ia escabreado, sem saber o que dizer a ela…”, (BONFIM, 2018, p. 190) desespera-se Gabiroba – “Eu sei. Ele já está comigo. E o espírito de tudo que vive novamente se manifesta, e quem vê se alegra pode dançar” (BONFIM, 2018, p. 190). Assim falou Ialna, por meio desse enigma, cuja solução talvez esteja no texto que Darcy Ribeiro nos legou em seu livro O povo brasileiro, obra de uma vida:

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos.”

*Escritora, pintora, tradutora. Possui doutorado em Letras (USP) e é professora titular da Universidade de São Paulo (USP). Departamento de Letras Orientais (DLO), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade São Paulo (USP).

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