Direitos Indígenas: uma questão de toda a sociedade

Os povos indígenas são os primeiros habitantes das terras brasileiras. Quando os portugueses atracaram na costa brasileira, o território já era ocupado. Entretanto, faz apenas pouco mais de 30 anos que direitos fundamentais das populações indígenas foram garantidos pela Constituição de 1988. Para celebrar essas três décadas e manter a discussão sobre o tema atual, Camila Loureiro Dias (Doutora em História) e Artionka Capiberibe (Doutora em Antropologia) organizaram Os Índios na Constituição, volume que reúne depoimentos de pesquisadores e intelectuais que exerceram papéis chave na definição dos direitos indígenas na Constituição Cidadã e de alguns dos atuais protagonistas dessa luta. A seguir, as organizadoras, professoras do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, falam sobre o projeto e sobre a atualidade da questão indígena no Brasil:

Como nasceu a ideia do projeto? 

Artionka: O projeto do livro é uma decorrência direta do Fórum “30 Anos da Constituição e o capítulo ‘Dos Índios’ na Atual Conjuntura”, organizado por nós e realizado em junho de 2018, dentro de uma política da Unicamp de divulgação do conhecimento acadêmico e de aproximação da universidade com outros setores da sociedade.

Camila: A ideia do Fórum Permanente, por sua vez, nasceu junto com a formulação de um projeto de pesquisa, hoje financiado pela Fapesp, que busca compreender o processo político e intelectual de definição dos direitos indígenas na Constituição de 1988.

Foi uma visita ao acervo do CEstA (antigo Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP, fundado pela professora Manuela Carneiro da Cunha), o que levou à ideia de realizar o Fórum. Lá encontramos um conjunto de documentos (folhetos, boletins, recortes de jornal, anotações pessoais, textos, formulários de proposição de emendas populares, entre outros) doados pela professora Manuela, que na época da Constituinte (1987-1988) era presidente da ABA, a Associação Brasileira de Antropologia, e fundadora da Comissão Pró-Índio – junto com o professor Dalmo Dallari, entre outros. Todas essas associações, e outras mais, tiveram um papel fundamental na mobilização social pelos direitos indígenas, desde o final da década de 1970. Algumas imagens de documentos desse acervo compõem o caderno de imagens do livro.

Ao mesmo tempo, estávamos no ano de 2018, quando a Constituição completava 30 anos e isso num contexto em que ela estava (e ainda está) sendo intensamente questionada, e em que o sentido do que nela está escrito tem sido disputado por forças políticas antagônicas. No caso dos direitos indígenas, entre aqueles que defendem os direitos de reserva e usufruto aos povos indígenas das terras que ocupam e aqueles que têm interesses comerciais nessas terras e nos seus recursos naturais.

Então surgiu a ideia de promover o encontro entre duas gerações de militantes pela causa indígena: os que atuaram na definição dos direitos indígenas durante a Constituinte e os que atuam na linha de frente, hoje, na defesa desses direitos. Assim seria possível aprender, pela história e pela memória, sobre o modo como os atuais direitos foram construídos, e isso nos seria um subsídio à nossa reflexão e atuação hoje.

O volume conta com depoimentos de pessoas que contribuíram para a definição dos direitos indígenas na Constituição de 1988. Como foi feita a escolha das pessoas que dariam os depoimentos ao livro?  

Camila Loureiro Dias, fotografada por Valério Paiva

Camila: O livro conta com os depoimentos de todos os que participaram do Fórum Permanente realizado na Unicamp e também com uma entrevista com o professor Dalmo Dallari, que não pôde participar do encontro, mas gentilmente aceitou conversar conosco. As pessoas convidadas a participar do Fórum são todas especialmente implicadas na causa, tanto há 30 anos como hoje, e falam de diferentes lugares. Ailton Krenak, nascido no Vale do Rio Doce, um intelectual iluminado, ilustre representante do movimento indígena, que fez uma memorável performance no Plenário em 1987 e hoje continua na luta depois de tantos reveses. Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga e articuladora da mobilização política e intelectual que foi responsável pela redação dos dois artigos e que também continua ativa e combativa, pautando a maneira de encaminhar o debate. O professor Dalmo Dallari, jurista, quem dava nome, descrevia e ensinava os conceitos: direitos originários, tutela; e que emana hoje um otimismo invejável. Por fim, José Carlos Sabóia, deputado constituinte, que nos revela a maneira como eram negociados os direitos no Congresso sem os freios do politicamente correto. As duas jovens lideranças indígenas que também vieram conversar conosco são igualmente figuras de destaque no cenário. Samantha Juruna (filha do Mário Juruna), percorre o país mobilizando sobretudo as mulheres na luta por saúde e educação e preza pela participação indígena na política institucional. Já Eloy Terena é advogado e doutor em antropologia, notável competente assessor jurídico da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Dessa forma temos um panorama do movimento social, da negociação política e do enquadramento jurídico da questão em dois momentos-chave: há 30 anos e hoje.

Artionka: A partir de meados dos anos 1990, o direito indígena constitucionalmente garantido começou a ser atacado e, nos últimos dez anos, esse ataque, conduzido principalmente por parlamentares ligados ao agronegócio, foi se tornando cada vez mais intenso, colocando em risco as conquistas de 1988. Sendo assim, o objetivo do Fórum foi também dar espaço para quem está, neste momento, buscando impedir a perda dos direitos conquistados e ouvir que estratégias têm sido assumidas para fazer frente principalmente ao ataque voraz sobre o artigo 231 da Constituição Federal, aquele que garante a terra indígena como direito originário.

O Fórum Permanente “30 Anos da Constituição e o capítulo ‘Dos Índios’ na Atual Conjuntura” foi a origem do livro, que foi lançado no “Fórum Permanente: Terras Indígenas e Interesses Nacionais”. Qual a correspondência entre os dois eventos?

Artionka Capiberibe fotografada por Gustavo Rossi

Artionka: No Fórum sobre os 30 anos da Constituição apareceram, nas falas e no debate, alguns temas correlacionados ao direito à terra indígena. Dentre eles, destacaram-se, por um lado, uma discussão sobre interesses nacionais, principalmente em relação a questões de fronteiras e de exploração de recursos naturais, e, por outro lado, uma diferença entre modelos de desenvolvimento. Nesse sentido, a discussão dos dois Fóruns está absolutamente imbricada, pois a questão sobre o direito à terra envolve os modos de conceber seus usos. Assim, o Fórum deste ano deu oportunidade de aprofundar alguns questionamentos surgidos no Fórum anterior.

É preciso destacar que as terras indígenas, junto com as Unidades de Conservação, Reservas Extrativistas e Comunidades Quilombolas são hoje os principais redutos de defesa dos diferentes ecossistemas que compõe o bioma brasileiro. São elas que têm contido o avanço do desmatamento produzido pela fronteira agrícola, ao mesmo tempo, as populações indígenas e tradicionais têm enfrentado a cobiça sobre as riquezas existentes em seu solo (como os recursos hídricos) e subsolo, minérios, sobretudo. Nessa matéria, há uma convergência entre o conhecimento indígena e o científico, ambos não cessam de demonstrar como o esgotamento do uso dos recursos naturais é danoso à continuidade da existência do planeta como um todo.

Camila: Os dois Fóruns buscam responder às questões que estão na pauta presente. O Fórum sobre direitos indígenas foi realizado em junho de 2018, antes, portanto, do período eleitoral. Naquele momento, os principais desafios aos povos indígenas vinham do Legislativo e do Judiciário. De lá para cá vivemos tudo o que vivemos e foi eleito um presidente que claramente se posiciona contra a demarcação de terras indígenas e a favor da exploração econômica das reservas florestais brasileiras. São intenções indubitavelmente antagônicas ao espírito da Constituição.

Se o Fórum de 2018 nos permitiu analisar o processo de definição dos direitos constitucionais indígenas, o Fórum de 2019 ampliou a questão ao propor que a demarcação de terras indígenas é também direito e interesse de todos os cidadãos brasileiros. Isto porque, comprovadamente, os povos indígenas preservam as florestas e possuem um conhecimento milenar da sua biodiversidade e das técnicas eficientes de manejo dela. E todos nós precisamos das florestas preservadas e do conhecimento indígena, para termos garantido de que, no próximo decênio, não vamos morrer de calor, de que vamos ter água para beber e que teremos o que comer.

O primeiro Fórum fornece subsídio de reflexão sobre os direitos indígenas às terras. Mas o segundo amplia a questão e a maneira de abordá-la, associando terras indígenas aos vários interesses que as circundam. E o Fórum de 2019 também assumiu uma outra dimensão: a defesa da Universidade pública, que está sendo moral e financeiramente atacada pelo mesmo poder executivo, mas que cumpre uma importante função social que é a de promover debates qualificados sobre temas que são importantes para toda a sociedade. Um dos momentos comoventes do encontro foi a fala da deputada Joênia Wapichana, ao nos contar sobre sua atuação na Câmara em defesa das universidades.

Acampamento Terra Livre (Brasília, 2019) fotografado por Artionka Capiberibe

Há um ano, quando o livro começou a ser realizado, qual era a situação dos índios no Brasil? 

Camila: Já faz muitos anos que os povos indígenas têm enfrentado desafios impostos por grupos que têm interesse em explorar comercialmente suas terras e os recursos naturais nela existentes, independentemente do lugar em que se situavam os últimos governos no espectro político. Desde 2004 os povos indígenas acampam em Brasília para exigir seus direitos. A situação veio piorando gradativamente e sob o governo Dilma já era muito difícil. Depois só continuou piorando. Há um ano, o que estava em debate era o sentido do que estava escrito na Constituição. Estávamos discutindo o parecer 001 da AGU, de julho de 2017, e o Projeto de Lei 490/2007 em tramitação na Câmara. Mas, ainda depois disso, foram trágicos os momentos das eleições em que o mero discurso de um candidato a presidência bastava para ampliar em pelo menos um terço os ataques a lideranças e comunidades, as invasões de terra, etc.

O que mudou desde então? 

Camila: Desde que assumiu o poder, o presidente Jair Bolsonaro tem promovido uma série de mudanças na estrutura do executivo que tem como objetivo paralisar o processo demarcação e rever as terras já demarcadas. O grupo militar que está no poder é claramente a favor da abertura das terras indígenas à exploração comercial e não esconde o objetivo de instituir uma política indigenista que retoma os valores anteriores à redemocratização e à Constituição de 1988. Ou seja, esse livro que é resultado do Fórum do ano passado vem em boa hora, pois precisamos saber o que eram os direitos indígenas antes e depois da Constituição.

Artionka: No espaço de um ano, houve uma mudança política significativa no país. O Brasil elegeu um presidente da República que é declaradamente anti-indígena, como se percebe no anúncio que fez, ainda na campanha eleitoral, de que, caso se elegesse, não haveria “nenhum centímetro a mais para demarcação” e de que ele iria aprovar uma lei em favor do armamento de produtores rurais, sinalizando para conflitos armados em torno da propriedade de terras o que atinge diretamente as populações indígenas em regiões sob pressão de atividades econômicas e que ainda não têm suas terras demarcadas, os Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul são um dos exemplos disso.

Buscando cumprir a primeira promessa, na reestruturação administrativa do governo –feita por meio da Medida Provisória-870 e, portanto, sujeita a aprovação do Congresso Nacional – o governo Bolsonaro retirou a Funai (Fundação Nacional do Índio) do Ministério da Justiça e a dividiu entre o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), ficando o setor de demarcação de terras na alçada do MAPA, que é conduzido por uma líder do agronegócio, ou seja, a raposa tomaria conta do galinheiro. Essa decisão gerou uma disputa política que reuniu o movimento indígena, o movimento dos indigenistas que trabalham na Funai e a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, articulada e coordenada pela deputada indígena Joênia Wapichana. Essa aliança conseguiu recentemente uma importante vitória, mudou o texto da MP-870, mantendo toda a Funai no Ministério da Justiça, agora a Medida Provisória segue para o Senado.

A grande mudança, em relação ao ano passado, me parece ser o deslocamento do local da disputa. Se antes o Congresso Nacional era o território prioritário de embate em torno de direitos e políticas públicas voltadas às populações indígenas, agora, a batalha principal se concentra no executivo.

Como a sociedade pode interferir nessa questão e qual a importância de preservar os direitos garantidos aos índios pela Constituição de 1988?

Camila: Os direitos dos índios têm sido ameaçados por vários grupos interessados na exploração comercial de suas terras e dos recursos naturais nelas existentes. Não somente o agronegócio, mas também mineradoras e garimpeiros, madeireiros, empreiteiras, traficantes de drogas e de pessoas, caçadores, pescadores, enfim, a lista é grande. A população das áreas urbanas ignora a realidade dos povos indígenas no Brasil. E a população das áreas rurais, em muitos lugares do Brasil, está em competição direta com esses povos.

O que isso tem a vem com os possíveis leitores desse livro? Por um lado, é bom lembrar que nossos padrões de consumo, tanto alimentar quanto tecnológico, fazem pressão sobre essas terras. Quando comemos carne, estamos comendo a floresta amazônica, e quando trocamos de celular estamos alimentando também a demanda pelos minérios que estão sob as terras indígenas. Portanto, a sociedade interfere nessas questões primeiro por meio dos seus hábitos cotidianos.

Por outro lado, essas terras comprovadamente desempenham papel estratégico para a preservação ambiental e, portanto, viabilidade do planeta. Além disso, as terras indígenas pertencem à União. São terras públicas. Ou seja, é importante para toda a sociedade que os direitos indígenas constitucionais sejam preservados.

Então, a população também pode interferir no processo começando por se perguntar quem se beneficia realmente da exploração comercial dos recursos ambientais das terras indígenas. É a toda população ou são apenas alguns grupos? É preciso também conhecer e aprender a respeitar esses povos. E é preciso, enfim, aliar-se a eles na luta pela preservação das suas terras e dos direitos que são de todos.

Acampamento Terra Livre (Brasília, 2019) fotografado por Artionka Capiberibe

Artionka: Quando o Estado se isenta de promover políticas que auxiliem no reconhecimento e valorização de populações minoritárias, quando ele se ausenta da responsabilidade sobre a existência e bem-estar dessas populações, ele transmite um recado: que não se deve a essas populações respeito, solidariedade, reconhecimento sobre sua importância para o conjunto da sociedade. Então, quando um ente do Estado, como o executivo, não só cruza os braços em relação às populações indígenas, mas destila um verdadeiro discurso de ódio contra elas, o efeito disso não pode ser outro se não o preconceito e a violência contra essas populações que ao longo da história de construção do país sempre foram menosprezadas e massacradas. A prova de que esse discurso de ódio tem um efeito prático são as crescentes ameaças e assassinatos de lideranças indígenas e o aumento vertiginoso das invasões de terras indígenas, desde o segundo turno da campanha eleitoral de 2018.

Os direitos sociais e sua garantia plena são fundamentais para que a sociedade tenha um norte sobre aquilo que é necessário e justo. Ao mesmo tempo, para que essa garantia se dê é preciso o apoio da sociedade. O livro, ao recuperar a memória da construção do capítulo “Dos Índios” e expor a luta pela sua garantia, é um meio importante de alerta sobre o respeito e o cuidado que este país deve historicamente às populações indígenas.

Nota: “A publicação do livro teve apoio do Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, com verba da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). As atividades resultantes no livro e nos Fóruns Permanentes 2018 e 2019 receberam apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa, da Pró-Reitoria de Ensino e Extensão e da Pró-Reitoria de Graduação da Unicamp, assim como da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por meio de Projeto de Auxílio à Pesquisa (Camila Loureiro Dias, O Capítulo Dos Índios: direitos, história e historiografia (1988-2018), processo n. 2018/12386-4). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade das autoras e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.”

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