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O Cotidiano São os Outros

O Som ao Redor
Renato Tardivo

O Som ao Redor (2012), estreia do pernambucano Kleber Mendonça Filho em longas-metragens, talvez já seja o filme brasileiro mais aclamado dos últimos anos, tendo recebido, entre outros, os importantes prêmios em Roterdã e Copenhague, além de ser incluído na lista dos 10 melhores filmes do ano do New York Times.

O filme aborda a banalização da violência – como fizeram outras produções brasileiras (Cidade de Deus, O Invasor, Tropa de Elite 1 e 2, entre outros) –, traz para o cerne a questão da invisibilidade social – temática trabalhada em documentários recentes e ficções documentais (Estamira, Linha de Passe e os filmes de Sergio Bianchi são alguns exemplos) – e, sobretudo, é um trabalho de linguagem cinematográfica (imagem e som) muito bem realizado. Os superlativos endereçados ao filme são merecidos.

A história se passa em uma única rua de um bairro de classe média de Recife – exceção feita a algumas cenas em Bonito (município próximo à capital pernambucana), no qual um dos personagens, Francisco (W. J. Solha em excelente performance), mantém uma propriedade rural.

Francisco, que possui muitos imóveis em Recife, onde reside, é praticamente o “dono” da rua em que se passa a trama, e é avô de personagens importantes. Seu enigmático sorriso, um rasgo no rosto, revela  um patriarca autoritário e bondoso, seguro e carente, tranquilo e tenso.

Há diversos núcleos na trama; às vezes eles se encontram, às vezes não. E, se Francisco é o “dono” da rua, no polo oposto, os personagens que se relacionam de fato com os demais são os três guardas, liderados pelo personagem de Irandhir Santos, os quais, um tanto “fora de lugar”, chegam para oferecer serviços de segurança particular aos moradores.

A câmera transita entre o interior (das residências e personagens) e o exterior. Dentro, ouve-se a imagem de fora; fora, ouve-se a imagem de dentro. O foco narrativo são os ruídos. A temática do filme, universal, é abordada pelo mergulho no particular e, nessa medida, ela se universaliza ainda mais.

O filme mostra que, no âmbito sociológico, continuamos a nos organizar sob a égide do Senhor/escravo, o que também ocorre no âmbito psicológico: a televisão do vizinho é maior, o casal perfeito é impossível, o corpo intenso só se relaciona com a máquina. E a máquina, que traz o gozo imediato, leva a vida para sempre.

Os corpos são fronteiras em que se alojam “cão de guarda”, “guarda-noturno”, “guarda-costas”. O estampido que leva o sorriso a uma família é o mesmo que traz a desgraça. Ninguém escapa. O cotidiano são os outros. Que gritam – em nós – silêncio.
Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Renato Tardivo é mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte pela USP e escritor. Atua na interface entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. Foi professor universitário e escreveu os livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras), e o ensaio Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).

1 Comentário


  1. Realmente ainda vivemos sob essa égide…o senhor dos escravos chama-se “neuroanatomia”.Seus servos, obedientemente, passam dias a decorar nomes sem sentido, quando na verdade, poderiam empregar seu tempo assistindo ao filme e, libertando-se do terrível chicote que é a subserviência…

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