A Carne, de Júlio Ribeiro

A Ateliê Editorial, neste momento de isolamento social, convidou alguns leitores para compartilharem suas impressões sobre alguns de seus livros prediletos. Com isso, pretendemos fortalecer uma comunidade de pessoas apaixonadas por livros, que sabem que eles podem ser uma excelente companhia em momentos como este. Este texto é de Alessandra Portinari Maranca*, que escreve sobre A Carne, de Júlio Ribeiro. Agradecemos a colaboração de Alessandra e esperamos que todos apreciem a leitura!

A Carne, de Júlio Ribeiro, é um romance naturalista que consome e absorve o leitor. Um livro sobre uma mulher cuja vida lhe faz sádica, mais inteligente que os homens, e segura de si. Conforme li, fiquei admirada com o quão progressista e polêmicas para a época as ideias retratadas são. Lenita é uma mulher forte, estudada, com os mais diversos talentos e desejos próprios. Mas ao mesmo tempo é violenta, e expressa suas emoções descontando-as nos outros. Essa contradição é o fio que guia o livro: a emancipação feminina é se tornar um homem ou é ter liberdade para ser mulher como se quiser?

Isto é a maior questão do livro, para mim: como a sociedade lida quando uma mulher é tão violenta, e tão arrogante quanto um homem. Cometendo as mesmas atrocidades aos escravizados que os homens da casa cometiam, sendo arrogante quanto aos seus descobrimentos científicos e idealizando a caça de animais inocentes na floresta, Lenira é um “homem típico” do final do século XIX. E isso causa revolta e repulsa. O progressismo não se encontra somente na personagem principal, mas em pontuações que o narrador faz: “Amor eterno só em poesias piegas. Casamento, sem divórcio legal, regularizado, honroso, para ambas as partes, é caldeira de vapor sem válvulas de segurança, arrebenta.” Essa discussão sobre o que o casamento-prisão dessa época de fato significava para a mulher na prática era fortemente censurada em todos os meios. 

O seu romance com Barbosa não deixa de ter um quê de inovação e críticas implícitas: os dois personagens são parceiros de estudo, e fazem ciências juntos. Não há um jogo de forças marcante entre eles, que se tratam com uma refrescante horizontalidade, e essa igualdade de tratamento era ensurdecedora nesse período (o que, somado às descrições sexuais e à violência, talvez explique porque o livro fora tão polêmico na época). Contudo, ambos são dominados pelos desejos sexuais, que sob a ótica do narrador naturalista caracterizam uma decadência em relação ao patamar racional que atingiam anteriormente.

 A carne, na obra, é uma entidade, um personagem que tem desejos próprios e guia a narrativa, como o cortiço em “O Cortiço”, de uma maneira tipicamente naturalista 一 inclusive uma das poucas coisas “típicas” ali. A obra aborda de uma forma natural o desejo sexual, as “perversões”, e o sexo de forma geral, entre animais e entre seres humanos. Com descrições relativamente explícitas, o narrador constantemente coloca o sexo como um fator presente nos ares e nas consciências dos personagens.

Além disso, a obra não se isenta de críticas à sociedade paulista da época: “Até 1887 vivia-se em pleno feudalismo no interior da província de São Paulo” e seguem-se as descrições satíricas dos jogos de poder. As descrições dos costumes, e hábitos ultrapassados da elite cafeicultora são postos com forte satirização pelo narrador.

Contudo, devo fazer um aviso: o escritor não se isenta da misoginia ao combatê-la, como no trecho: “(Barbosa) conhecia a fundo a natureza, a organização caprichosa, nevrótica, inconstante, ilógica, falha, absurda, da fêmea da espécie humana; conhecia a mulher, conhecia-lhe o útero, conhecia-lhe a carne, conhecia-lhe o cérebro fraco, escravizado pela carne, dominado pelo útero; (…) e fora se deixar prender nos laços de uma paixão por mulher!”. Típico na literatura brasileira, o retrato da mulher como sedutora e manipuladora é comum. Mas aqui, a misoginia adquire um outro tom, que é o do naturalismo, afirmando que o gênero determina as capacidades mentais e comportamentos de uma pessoa. Durante o luto de seu pai, por exemplo, é afirmado que Lenira “entrara na convalescença do cataclismo orgânico”, e “feminizava-se” o que nas palavras do narrador implicaria em “perder a sede de ciência”, prática fortemente associada à homens. 

O desfecho, para mim, é o ápice da obra.  Recheado de ironia, ocorre a completa inversão dos papéis românticos e é colocado em discussão qual sexo seria de fato “irracional e impulsivo”. A Carne, além de um romance divertido, cítrico, e dinâmico, é um prato cheio para discutir a sociedade cafeeira paulistana do século XIX, seus papéis de gênero e o que é violência e amor para essa elite. 

*Alessandra Portinari Maranca tem 18 anos e é aluna do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo. Ela também é professora do Cursinho Popular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, e literatura é uma das suas maiores paixões. 

1 Comentário


  1. Oi, Alessandra. Muito bom seus comentários a cerca do livro. Eles me ajudaram a iluminar meus pensamentos para uma atividade acadêmica. Obs.: te segui no ig. \,,/

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