Chico Buarque em Caravanas

Por Renata de Albuquerque

Chico Buarque acaba de lançar um novo álbum. Caravanas chega ao público seis anos depois do lançamento de Chico, mais recente trabalho de inéditas. O lançamento já seria, por si, um acontecimento, já que Chico Buarque é um compositor cultuado e fundamental na cultura brasileira. Mas, além disso, a faixa “Tua Cantiga” recebeu críticas pelo conteúdo que teria um viés machista (na letra, um homem diz à amante que largaria mulher e filhos para ficar com ela).

Para falar sobre o novo disco, o Blog da Ateliê convidou Adélia Bezerra de Meneses, professora de Teoria Literária e pesquisadora da obra de Chico Buarque. Ela é autora de Desenho Mágico – Poesia e Política em Chico Buarque e Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque. Além disso, foi uma das personalidades que elegeu, em enquete da Folha de São Paulo, “Construção” como a canção mais icônica de Chico Buarque.

Quais são suas impressões sobre o novo trabalho de Chico Buarque?

Adelia Bezerra de Meneses: O alto voo dos  trabalhos do Chico se mantém neste último disco  – e isso é extraordinário:  ao longo de mais de 50 anos,  continuam a ser  fabricadas  obras primas!   Não apenas musicalmente, melodicamente , onde ele atinge um nível de sofisticação  que por  vezes demanda  uma escuta mais exigente (mas esse aspecto deixo aos críticos musicais  para se pronunciarem),   mas como  artista da palavra, como poeta. Ele  continua a nos “traduzir”, a nomear, a colocar em palavras sentimentos e emoções não verbalizados,  situações humanas de alta voltagem, e que se não fosse por sua poesia,  permaneceriam não formulados,  literalmente inarticulados.

 

Em um momento político tão complexo e sendo a senhora autora de “Desenho Mágico – Poesia e Política em Chico Buarque”, como avalia o novo disco, sob este aspecto em especial?  

ABM:Toda poesia, toda produção literária, é engendrada de um solo histórico-social, Isso não significa que os dados “políticos”  tenham que aparecer tematicamente.  Mesmo canções inapelavelmente líricas, como “Tua Cantiga”, “Dueto” ou “Casualmente”  , que se afiguram como apolíticas, são “poesia-resistência”:  recusam a realidade opressora e massificadora, contrapondo-lhe a força do afeto.  Pois dizer o afeto numa realidade social adversa, em que até as emoções são terceirizadas, é resistir. Mas neste disco  Chico também  tematiza questões candentes.  Por vezes em filigrana. E entre os problemas da nossa época   (para além da corrupção e do desmoronamento político, bem como da perda da utopia) estão a polarização política, com o acirramento da Direita  e todos os retrocessos sociais  que daí derivam , engendrando um ódio destilado não apenas nas redes sociais, mas que escorre como bile nos confrontos e encontros de rua; e a  xenofobia, o medo  frente ao Outro,  o medo daquele que foi excluído, mas que pode aparecer e reivindicar seu espaço. Pois bem, esse novo CD do Chico  atravessa essas  questões,  tematiza embates com essa  direita  açulada, mas  sempre utilizando a ironia .

 

Houve uma importante discussão em torno da letra supostamente “machista” de “Tua cantiga”. Como autora de “Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque”, qual sua opinião a respeito?

ABM: Mais uma  vez, avulta  a estridência do politicamente correto por parte dos patrulheiros de plantão, que não entendem direito, mas se arvoram em censores.   Lembro-me de o Chico contar em entrevista que , quando compôs “ Mulheres de Atenas”, foi criticado porque o refrão dizia “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”… Como ele  poderia propor que essas mulheres, tão submissas, servissem  de exemplo? ).  Em relação a “Tua Cantiga”, há duas coisas a serem observadas: a primeira é que  o “eu lírico” ou “eu poético” não é identificável  ao autor-pessoa física, com RG e CPF, que escreveu (ou não)  “essas rimas”: o eu lírico é construção. A segunda é que  essa canção, que ilustra o lado inapelavelmente lírico de Chico cantor do amor, filia-se – enquanto tom e enquanto postura emocional  (não falo do aspecto formal) –  ao gênero de  uma “Cantiga de Amor”,  entroncada no Trovadorismo Medieval (séculos XII a XV),   em que a dama era a “senhora”  absoluta  do trovador.Os índices  de um amor nesse modelo – suspiro, lenço,  perfume, o soprar o nome, o vigia, o seguir de joelhos, a rainha (cruel,  talvez), a obediência incondicional (“deixa cair um lenço / que eu te alcanço / em qualquer lugar”) , o cuidado (“silentemente / vou te deitar / na cama que arrumei”), o serviço amoroso (“pisando em plumas / toda manhã / eu te despertarei), as juras de amor ( “Mas teu amante / sempre serei / Mais do que hoje sou”),  a aceitação da não reciprocidade…  tudo isso remete às   Cantigas Medievais,  sob o signo da vassalagem amorosa,  cujo tema era exatamente o sofrimento,  a “coita de amor”. (“Coita”: daí se originou a palavra “coitado”) . Sabemos que o amor cortês implica, por parte do “amador”,  uma paixão incondicional,  que infringe  regras e leis – aliás, há um traço necessariamente antimatrimonial nessa ligação, nos quadros do mundo feudal. Amor como força soberana, suserana, amor  vassalo, paixão avassaladora ,  que nem reciprocidade exige (“Entre suspiros/ pode outro nome / dos lábios te escapar/), embora aí lateje  o ciúme  (Terei ciúme / até de mim / no espelho ), num patamar de pura adoração: “na nossa casa / serás rainha”;  “de joelhos vou te seguir” – o poeta é um “precator”, um suplicante, e por  detrás de sua  súplica  paira necessariamente  a sombra do adultério. Só fora do casamento  oficial (encarado como aliança de interesses outros que os afetivos),  esse  amor poderia  existir, representando a primazia do sentimento sobre o institucional.  Dessa perspectiva, o  “largo mulher e filhos”  é  metáfora do amor absoluto, avassalador,  que infringe regras e vibra no diapasão  da experiência passional.

Deve-se censurar a Camões, que fora dos quadros do amor trovadoresco, em pleno século XVI, diz  num dos seus poemas que vai “servir de giolhos”  (joelhos) sua amada? Ou Shakespeare, por ter criado um Otelo tão inconveniente nos seus ciúmes?  A Poesia é “mimese”,  é representação do real, e o real não segue nenhuma cartilha de bom comportamento.

Vivemos  num caldo cultural em que várias águas se misturam: e há traços do amor (e como todo elemento humano, o amor é historicizado)   que subsistem e que atuam … e que , deitando raízes lá no século XII,   como no caso, existem  para além da época em que foram  expressos, e que são constituidoras da vivência amorosa dos seres humanos de outros tempos e de outros espaços.  Por sinal, qual é o “nosso tempo”  a que se refere a última estrofe?  (“E quando o nosso tempo passar / Quando eu não estiver mais aqui /lembra-te, minha nega / desta cantiga que fiz pra ti”) .  Eu apostaria na ambiguidade: o nosso tempo seria o tempo do Trovador do século XII que faz uma Cantiga de Amor à sua senhora  e do eu lírico do século XXI, que vive uma  paixão avassaladora e faz uma CANTIGA   para  sua “nega”.

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