Marina Abramović – singular e múltipla

Renato Tardivo*

 

A servia Marina Abramović é uma das artistas mais relevantes da atualidade. Com a exposição Terra comunal, em cartaz até maio deste ano no Sesc Pompeia, em São Paulo, o público tem a oportunidade de conhecer de perto o seu trabalho, além de participar de bate-papos e vivências com a artista.

Conhecida como a “avó da performance”, Abramović vem se notabilizando nas últimas décadas ao propor diversas obras cujo continente é o seu próprio corpo. Assim, ao levar as possibilidades corpóreas ao limite – explorando suas relações com outros corpos e com a natureza e, ainda, desafiando muitas vezes o seu funcionamento – a artista convoca o espectador a refletir sobre a sua própria condição.

 

Perspectiva relacional

É célebre a proposição de Marcel Duchamp: “São os espectadores que realizam as obras”. Em direção análoga, o historiador da arte Giulio Carlo Argan afirma que “a arte existe para ser percebida”. O papel do espectador, dessa perspectiva, é essencial, pois não se limita a assimilar ou acessar elementos contidos na obra, mas participa ativamente da construção de sentido. Esta é, portanto, uma perspectiva relacional, segundo a qual o sentido não se encerra apenas na obra nem apenas no espectador: ele se constrói entre a obra e o espectador.

Marina Abramović potencializa esse efeito ao eleger como temas das performances esse espaço do entre, sobretudo nas obras que criou com o artista e companheiro de vida por 13 anos, Uwe Laysiepen (conhecido como Ulay). Vamos relembrar algumas delas.

Em 1977, o casal expôs “Imponderabilia”, performance que consistia no seguinte: nus, de frente um para o outro, estáticos e simétricos, os artistas apoiavam-se em colunas de modo a deixar um espaço estreito entre seus corpos. Ao público, cabia passar por esse espaço, inevitavelmente tocando os corpos dos artistas. Nessa mesma época, o casal propôs “Light/Dark”: frente à frente e sentados sobre os calcanhares, ambos estapeavam a face um do outro, iluminados por duas fontes de luz sobre o fundo escuro em que se encontrava o público – que reagia das mais diferentes formas. E em “Rest energy”, performance apresentada em 1980, Abramović segurava um arco, enquanto Ulay tensionava uma flecha, apontada para a artista. Nessas e em outras performances, há, portanto, uma tensão entre os corpos, seja entre os corpos dos artistas, seja entre estes e os espectadores.

Com o fim da parceria com Ulay, Marina dedicou-se às aproximações da performance com o teatro, interpelando ainda mais diretamente o espectador. Célebre, nesse sentido, é “The artist is present”, performance de 2010 que se estendeu por mais de 700 horas, ao longo de meses, no MoMA, em Nova York. Nela, a artista ficava sentada, imóvel, de um lado de uma mesa e o espectador sentava-se do outro lado, olhando os olhos da artista por tempo previamente indeterminado. Ao longo da exposição, Abramović prescindiu da mesa, restando apenas as cadeiras.

Marina Abramović - The Artist is Present - A Artista está Presente The Artist is Present**

Trata-se, com efeito, de uma performance emblemática, uma vez que, nela, mais do que nunca, a artista explorou corpo e mente à exaustão, mas dessa vez imbuída de raro minimalismo: viver em silêncio a troca de olhares com o outro. Com efeito, “The artist is present” empreende um mergulho radical no espaço intermediário entre artista e público, de modo a questionar essas próprias condições: o espectador é convocado a participar da obra enquanto a artista o contempla.

 

Espaço invisível

Ao convocar o espectador a partir de um mergulho nas faculdades expressivas do corpo, Marina Abramović dialoga com o pensamento de Maurice Merleau-Ponty, filósofo que supera o dualismo entre o sentir e o entender ao propor que o pensamento recue ao seu ponto de partida, isto é, ao mergulho no sensível.

É também em consonância com Merleau-Ponty que, por exemplo, João A. Frayze-Pereira mostra a construção da arte a partir do encontro entre a forma e o mundo em Arte, Dor – Inquietudes entre Estética e Psicanálise.

No caso de Abramović, o corpo, tocante e tangível, zona de fronteira entre mundo interno e mundo externo, é emblema da ambiguidade perceptiva: como no encontro entre as mãos que se tocam (qual toca e qual é tocada?), há uma reversibilidade que jamais se esgota. Este hiato entre nós e as coisas, sujeito e objeto, artista e espectador, é o espaço invisível que preexiste e amadurece em sintonia com o visível. E é a este lugar que as performances de Marina Abramović nos convocam – porque é dali que partem e para lá que retornam. Não é aleatória, portanto, a ênfase na sensorialidade em suas obras.

Em “The artist is present”, a propósito, há uma exaustão que ultrapassa o cansaço físico. Desde Freud, sabemos que somos muitos e que, por isso, convocamos o outro (que também nos convoca) a múltiplos lugares. Resumidamente, este é o fenômeno da transferência: transferimos todo o tempo (e não apenas em análise) emoções e afetos que dizem respeito à nossa complexa trama histórica. Assim, em direção contrária à banalização tipicamente contemporânea em que somos muitos e nenhum, Marina Abramović se expõe à multiplicidade feroz do olhar do outro, de modo que esse outro, refletido no corpo da artista, possa se ver, se sentir, se pensar: singular e múltiplo.

 

* Escritor, psicanalista, professor universitário e doutor em Psicologia Social pela USP. Publicou os livros de contos Do Avesso (Com-Arte/USP) e Silente (7Letras), e o ensaio de Porvir Que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).

**Marina Abramović

The Artist is Present (A ArtistaestáPresente)

Performance

3 meses

The Museum of Modern Art, Nova York, NY

2010

Fotografia de Marco Anelli

Cortesia do Acervo Marina Abramović

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