Condução

Branka - baixa

Alex Sens Fuziy

Abro os olhos. Relaxo as falanges e a língua, músculo pulsante onde ainda tremula um mantra colorido, cheio de Ganesha. Um dedo pressiona o par de colcheias no visor do aparelho. Procuro no escuro a letra B: Branka Parlić. Por um momento maior, esse momento que nos traga e nos guia a uma dimensão inesperada, de beleza que é mais surpresa que encanto, caio nas águas do nome dessa pianista sérvia: Branka. Minha percepção de sonho ou de mergulho afunda no vigor da letra K, tão sólida, tão brilhante, tão marmórea e tão branca quanto o nome que a carrega. Logo em seguida, ainda gelado pelo que toquei com o coração da palavra, me deparo com Parlić. O que poderia ser uma faca cravada na letra C, não passa de uma forma latina para o cirílico Ћ, consoante que guarnece o fim de muitos sobrenomes servo-croatas. O grafema tem o som da língua se afastando subitamente dos dentes cerrados: tch. Como se fosse “Párlitch”. Algo estalando no fogo do sobrenome. Fogo e gelo, choque térmico sobre o mármore de Branka, ou Бранка, forma feminina de Branko, que por sua vez é diminutivo de Branislav, que por sua vez é um cognato de Bronisław, que, por fim, deriva dos elementos eslavos “bron”, proteção, e “slav”, glória. Não há nada de branco no nome que me atinge com seu duro K: mas há brancura no talento da pianista: a brancura que nasce do caos do giro das cores iluminadas.

Você sabia que a mistura da reflexão de todas as cores resulta em branco? Se ela não carrega o nome que nos aproxima do adjetivo, pelo menos leva proteção e glória nos dedos que nadam velozes pelas teclas do piano como peixes ansiosos. E enquanto eu vejo aquele nome e busco pela música que já não sei mais qual é, me afogo nessas ideias, vou deixando na superfície das coisas ondulantes tudo o que eu tinha para escrever aqui e acabei não escrevendo. Porque além dos nomes, as palavras todas me possuem e eu também viro palavra, e eu também vou me permitindo ser qualquer coisa: fusão do mantra, do silêncio, das cores que piscam no quarto; transfusão de luz, pensamento e linguagem. De repente eu tenho vontade de me chamar Branka, porque gêneros ultrapassam corpos e caio na desgraça sedutora de não ser mais eu mesmo, mas o próprio nome que me fagulha antes da ansiedade musical. Ou musicada.

O que mesmo eu ia escrever aqui?

A composição, feita pelo gênio Philip Glass, chama-se “Mad Rush”. É ali que meu dedo toca, sobre o título, e o piano se derrama em planícies verdes de som líquido. Volto a fechar os olhos e a música inunda a escuridão. O que vem a seguir é uma sequência de imagens que fogem do meu controle, como se cada nota, cada tom de azul e negro e escarlate e principalmente cinza, cada tom que escorre dessa música contínua fosse o feto axial da minha imaginação — ou desse origem a ele.

Câmera lenta: o som de um coração pulsando dentro de um berilo: uma chuva de maçãs vermelhas: só vejo as maçãs, não sei se estouram no que sei ser gramado mais embaixo ou se simplesmente afundam no verde como se feito de espuma; diástoles e sístoles continuam, muito mais sutis do que a música. Atrás das maçãs há casas pintadas de cinza, telhados vermelhos e nuvens cinzentas, todas responsáveis por aquela chuva. Não vejo quando as frutas deixam as nuvens, só a queda. Uma luz gira: o contraste explode: as casas se enegrecem como fatias de carvão contra um céu brilhante. Não chego a cegar porque a cena vira a folha de um livro.

Branka continua tocando: quando a música ascende a uma pressa urgente, tento abrir os olhos e tudo o que vejo são olhos se abrindo num tremor infinito em asas de mariposas, borboletas e corujas. São olhos feitos de penugem branca, retinas azuis, profundezas que guardam o suco da noite. Elas voam, abrindo a imagem para uma sequência inversa à das maçãs: camas de ferro lascado flutuando em direção ao céu. Centenas delas, brancas e frágeis como esqueletos do sono, mortalhas de sonhos, subindo lentamente, sem a gravidade dos pesadelos, sem a gravidade que continua prendendo o coração ao berilo.

Quando a música cessa, a realidade rompe a janela na forma de uma cigarra: elétrico, corrosivo, acobreado, seu canto perfura o silêncio e alguma coisa sem nome suspira diante da vida. Essa coisa me escapa, mas sei que pode voltar. Basta fechar os olhos, permitir-se, deixar-se conduzir ao lago de éter que…

O que mesmo eu ia escrever aqui? Não importa.

 

As palavras todas - Alex

Alex Sens Fuziy nasceu em 1988 em Florianópolis (SC), vive em Minas Gerais e é escritor. Publicou Esdrúxulas, livro de contos de humor negro e realismo mágico, seguido pelo livro artesanal Trincada. Teve contos e poemas publicados em sete coletâneas e em revistas literárias virtuais, assim como resenhas de livros e críticas em sites de jornalismo cultural. Seu romance de estreia O Frágil Toque dos Mutilados venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2012.

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