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O ridículo das ‘verdades’, ainda mais ridículo

Gustavo Piqueira, tradutor A História Verdadeira, responde a resenha do livro publicada no jornal O Globo

A História VerdadeiraEstá lá, no quarto parágrafo da resenha: “Luciano é bem atual.” Já no sétimo: “Sim, Luciano é um ficcionista, mas sua intenção não é apenas fazer rir. Mas será que isto importa quando lemos ‘A história verdadeira’? Não! Podemos apenas fluir com Luciano em seu saboroso desatino.” Tudo ótimo, tudo ótimo…

Tudo ótimo até tropeçarmos na edição. Em primeiro lugar, pecado mortal, “a concepção visual impressiona”. Pior: a tradução… Ah, a tradução. “(…) a fonte original nem é mencionada”, imagine só! Afinal, todos sabem que “o que difere uma obra de outra é o estilo de quem a escreve”. Apenas isso, nada mais — ou seja, todas as obras escritas até hoje sempre abordaram sempre o mesmo tema, com o mesmo olhar. Como conclusão, “é difícil não lamentar que o mundo contemporâneo se deleite cada vez mais com a ideia de reduzir o passado aos seus próprios valores e medida.

Escrevo isto, portanto, não como uma réplica ao artigo. Pelo contrário. Este texto não passa de um humilde e envergonhado pedido de desculpas, dirigido não apenas à autora como a todos os medievalistas do Brasil. Confesso, porém, ter imaginado que minha tradução relativamente fiel para A história verdadeira era uma opção, não um erro. Opção, aliás, assumida na capa e no texto introdutório do livro. Na minha cabeça, era possível tornar a obra acessível ao leitor de hoje sem precisar descaracterizá-la. Editar um livro para ser lido, não para ser estudado. Mesmo porque, até onde meu restrito conhecimento alcança, Luciano chegou aos dias de hoje como satirista, não como mestre do estilo literário. Não por coincidência, “Luciano influenciou Voltaire, Machado de Assis e Swift.” Eles tinham senso de humor, os três, não tinham? Um pouco iconoclastas também, não? Mas, que eu saiba, Voltaire não revolucionou a literatura francesa.

Sim, toda opção deixa algo para trás. No meu caso, a fidelidade formal e o contexto histórico deram lugar à fluidez da narrativa. E, já que estamos falando de ortodoxia, escolhas que a aproximaram da “edição” original muito mais do que a grande maioria das demais (ou você acha que Luciano incluiu notas explicativas em sua “edição” original? Ou que todos os que a leram decifraram, de primeira, todas as citações e menções do autor? Ou que sua linguagem não era reflexo de seu tempo presente?) Opção, portanto. Não erro. Escolha consciente daquilo que me pareceu uma boa possibilidade — não a única, mas a que me atraiu a conceber e desenvolver o projeto. Se, afinal de contas, Luciano é atual e o mundo contemporâneo carece de suas ideias, por que não difundí-las para além dos muros do feud… ops, da universidade? Por que não permitir que um número maior de pessoas possa “fluir com Luciano” sem que sua leitura deva assemelhar-se a uma aula de História?

Eu estava enganado, claro. Deveria ter sido mais reverente — dane-se que livro é um dos mais irreverentes da história. Mantido Luciano mumificado, enquanto o próprio avacalha sem piedade Homero, Platão e Sócrates — para ater-me aos mais sagrados. Deveria ter preservado o “estilo encantador” de Luciano, mesmo que isso restringisse sua leitura a doze pessoas (numa projeção otimista). Adicionado centenas de notas de rodapé, pois como rir de uma sátira sem o auxílio de duzentas e quinze notas de rodapé? Além de ter evitado ilustrações, capa dura…Cores! Como pude usar cores num livro clássico? Desculpe, desculpe, desculpe.

Mas sou esforçado e sigo aprendendo. A instrutiva leitura da resenha me ensinou, por exemplo, que um medievalista não apenas detem o saber avançado sobre a referida época, mas também absorve parte de seus valores — como tachar qualquer opção diferente da sua como errada. Pode me enviar o endereço da fogueira por email mesmo, ok? Prometo comparecer sem demora e expiar todos meus erros.

E, nunca é demais repetir: desculpe, desculpe, desculpe!

(Nota de rodapé: o primeiro parágrafo do artigo é uma pérola, repare só. Uma elegia a “um tempo bem diferente do nosso, no qual não se aplaudiam os vícios e nem se desprezavam as virtudes, como se os valores humanos fossem ninharias sem importância.” Grécia e Roma antiga, além da Idade Média. É verdade. Tempos áureos… O coliseu, onde não se aplaudiam os vícios. Tantos imperadores vivendo a virtude em estado puro. Inquisição, cruzadas e similares não tratando os valores humanos como ninharias sem importância… época boa, mesmo. Dá saudade, né?)

Saiba mais sobre o livro A História Verdadeira

Acesse aqui a resenha publicada no jornal O Globo

Gustavo Piqueira é autor de dez livros entre eles Marlon Brando – Vida e Obra (WMF Martins Fontes, 2008), Manual do Paulistano Moderno e Descolado (WMF Martins Fontes, 2007), Morte aos Papagaios (Ateliê Editorial, 2004), A Vida sem Graça de Charllynho Peruca (Biruta, 2009) e Eu e os Outros Pioneiros da Aviação (Escala Educacional, 2007), ambos selecionados para o PNBE 2010. Também ilustrou livros infantis, desenhou alfabetos e, à frente da Casa Rex, é um dos designers gráficos mais premiados do país, com mais de 100 prêmios internacionais de design, além de dois Jabutis.

1 Comentário


  1. excelente resposta para a história da verdade crítica que não se ocupou em traduzir uma verdade própria. eu tenho o livro, já li e me deliciei com o conjunto. tudo está ali pairando como uma boa piada da humanidade que é – sempre – pretensiosa. parabéns Gustavo pelo trabalho no melhor estilo Luciano de irreverência assumida. forte abraço!

    ps: compartilhei no fa”k”ebook, afinal de contas…

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