No Rastro dos Mitos

Maria Luiza Tucci Carneiro escreve sobre como surgiu a obra Dez Mitos sobre os Judeus, um trabalho que marca sua própria trajetória de pesquisadora acadêmica

Maria Luiza Tucci - Foto por Boris Kossoy, 2014
Maria Luiza Tucci – Foto por Boris Kossoy, 2014

Por Maria Luiza Tucci Carneiro

Escrever o livro Dez Mitos Sobre os Judeus foi um grande desafio, por exigir a depuração de uma pesquisa que realizo desde 1972 quando iniciei o meu mestrado junto a Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Anita Novinsky. Ao investigar as raízes do racismo no Brasil desde os tempos coloniais, deparei-me com o mito da pureza de sangue que, desde o século XV, servia aos interesses da Inquisição e do Império absolutista na Espanha e, posteriormente, em Portugal. As primeiras descobertas surgiram das pesquisas que realizei nos arquivos da Torre do Tombo em Portugal, na Biblioteca Nacional de Lisboa, na Cúria Metropolitana de São Paulo e Belém do Pará. Analisando os Sermões de Autos-de-Fé, os Processos Inquisitoriais e os Processos de Habilitação de Genere e Moribus, deparei-me com um mundo intolerante, delineado pela força dos mitos. Constatei que, ao longo de séculos, uma retórica intolerante era articulada com o objetivo de excluir os judeus, os ciganos, os negros e os mouros das sociedades ibérica e brasileira. O discurso dominante, ordenador da sociedade, fundamentava-se na mentira que é portadora de uma aparência  ou de uma probabilidade de verdade.

Procurando compreender a narrativa do mito da pureza de sangue, que classificava os judeus e seus descendentes como uma “raça infecta”, deparei-me com outros mitos: do judeu errante, do judeu deicida, do judeu avarento e parasita. Seduzida pelas possibilidades metodológicas oferecidas pela análise do discurso à luz do imaginário e dos mitos, ampliei meu repertório ao constatar que a maioria dos estigmas que caracterizavam o antissemitismo de fundamentação teológica (do século XV ao XIX) persistiam no século XX servindo também aos nazistas interessados em divulgar a imagem maligna dos judeus. Inquieta, saí em busca de documentos que comprovassem também o endosso do mito da pureza de sangue por intelectuais, cientistas e diplomatas brasileiros. Adentrei aos arquivos diplomáticos e bibliotecas brasileiras em busca de documentos oficiais, obras raras, peças de teatro e charges que expressassem a circulação dos mitos no Brasil. Foi quando identifiquei um corpus documental  expressivo do discurso antissemita que, a partir  de 1930 e 1940, servia para “diabolizar os judeus enquanto eternos “bodes expiatórios”. Estavam abertas as portas para a minha tese de doutorado publicada em 1988 sob o titulo O Anti-semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma Geração, hoje na sua 3a edição.

A partir deste momento, defrontei-me com a persistência de outros mitos que, ainda hoje, circulam pela internet: do complô internacional judaico-comunista fundamentado na obra apócrifa Os Protocolos dos Sábios de Sião e do Judeu Internacional, de Henry Ford. Cruzando com outras narrativas, identifiquei um universo rico em mentiras que, de forma generalizada, construíam teorias conspiratórias seduzindo todos os tipos de indivíduos, bem e mal informados. Interessados em encontrar uma resposta para os seus problemas pessoais ou do seu grupo, deixavam-se envolver pelo medo e por referências do passado. Concentrei o foco das minhas pesquisas nos documentos que acusavam os judeus de formarem uma “sociedade secreta” relacionando-os com a Maçonaria. Endossados pelos nazistas, estes mitos ajudaram a construir a imagem do “perigo judaico” ou “perigo semita” interpretado sob o prisma do capitalismo enquanto sistema econômico destruidor da Humanidade. Emergia assim a imagem da hidra e do “monstro das sete cabeças” que quer tragar o povo, alimentando as mentes fantasiosas que não precisam ver para acreditar.

Analisando as charges divulgadas na Alemanha, na França, na Argentina, no México, e no Brasil durante as décadas de 30 e 40,  constatei que um conjunto de metáforas – do sangue impuro, do judeu avarento, do judeu comunista-maçon, dentre outras – facilitavam a circulação dos mitos, sendo destiladas por cartunistas, caricaturistas e literatos. Percebi que, em doses homeopáticas, as mentes vão sendo forjadas, ao longo dos séculos, pela introdução de personagens que amedrontam instigando o ódio e a repulsa aos judeus. Daí o livro Dez Mitos Sobre os Judeus articular textos com imagens propagadas através da pintura e da caricatura. A partir destes registros, procurei analisar a ideia de “perigo judaico” sob a lógica da desconfiança. Constatei que ao longo dos séculos, um conjunto de mentiras instigaram os movimentos de “caça as bruxas”, transformando os argumentos em forças mobilizadoras, ou seja: justificavam as prisões e o extermínio do povo judeu, incitando o ódio, prisões, torturas, deportações e massacres que culminaram no Holocausto.

À luz das teorias racistas, retomei a imagem do judeu apátrida que, cruzada com a imagem do judeu errante, levou-me a refletir sobre a imagem do judeu enquanto cidadão do mundo, tema que serviu de inspiração para a minha tese de Livre-Docência apresentada na FFLCH/Universidade de São Paulo em 2001. Hoje, publicada em livro, este livro sintetiza a minha trajetória de historiadora dedicada aos estudos dos mitos e do antissemitismo, em particular.

A partir destas narrativas, fui reconstituindo os centros produtores do ódio e da intolerância antissemita com o objetivo de identificar a multiplicação da mentira que atravessa séculos. Para compreender o processo de construção dos mitos – dentre os quais o mito ariano divulgado pelos nacional-socialistas e endossado por milhares de cidadãos dos países colaboracionistas da Alemanha nazista – optei por analisar a ideia/imagem de “perigo judaico” sob a lógica da desconfiança. Imediatamente, constatei que ao longo dos séculos, um conjunto de mentiras instigavam os movimentos de “caça as bruxas”, transformando os argumentos em forças mobilizadoras, ou seja: justificavam a prisão e os extermínio do povo judeu, incitando o ódio, prisões, torturas, deportações e massacres que culminaram no Holocausto.

Para “descontruir” o processo  de demonização dos judeus enquanto símbolo do Mal, recuei no tempo em busca da gênese do mito que afirma que “os judeus mataram Cristo”. Passei a analisar as Sagradas Escrituras que, durante o Medievo, receberam acréscimos e alegorias por parte dos cristãos que procuravam se autodefinir como aqueles “respeitavam D’us e não cometiam delitos”. Constatei também que representações artísticas somavam forças às mentiras propagadas pelos cristãos que, desde os séculos II e III, instigavam o ódio aos judeus acusando-os de terem “matado Cristo”. Lembrei-me dos meus catecismos e dos sermões que ouvi durante a minha infância na minha cidade natal. Constatei que, assim como tantos outros católicos, eu havia sido “educada” à luz dos mitos do deicismo e do judeu errante, imagens que permeiam (ainda hoje) o imaginário cristão.

Foi assim que reuni, ao longo as minhas pesquisas e instigada pela atual realidade que abala a sociedade ocidental, o conjunto de mitos que deram origem ao livro Dez Mitos Sobre os Judeus. Dentre os mais popularizados, selecionei: Os judeus mataram Cristo, são uma entidade secreta, dominam a economia mundial, não existem judeus pobres, são avarentos, não têm pátria, são racistas, são parasitas, controlam a mídia e manipulam os Estados Unidos. Articulando o passado com o presente e alertando para o perigo de um futuro intolerante e racista, apresento alguns dos mitos políticos que deturpam a união e identidade religiosa dos judeus, enquanto mitos criados por “outros”, em uma visão preconceituosa, que deprecia com a intenção de acusar e condenar.

Para facilitar a leitura, estruturei os Dez Mitos Sobre os Judeus no formato de um breviário, uma composição de textos breves que podem ser lidos em doses homeopáticas. Apesar de numerados, não têm uma ordem obrigatória, cada qual tem vida própria. Para encerrar cito um fragmento do Prefácio escrito pelo sociólogo Kabengele Munanga:

Os judeus não são os únicos sujeitos/objetos de mitos em nossa sociedade, salienta a autora: as mulheres, os indígenas, os ciganos, os negros e os homossexuais são também objetos de mitos e das piadas que, mesmo contadas de maneira lúdica, não deixam, apesar dos risos relaxantes, de nos transportar ao mundo simbólico cujos efeitos políticos e ideológicos não devemos minimizar.”

*Maria Luiza Tucci Carneiro: Historiadora e Professora Associada do Departamento de História da FFLCH, Universidade de São Paulo, credenciada nos seguintes Programas de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo: História Social da FFLCH/USP; Direitos Humanos da Faculdade de Direito São Francisco/USP; e Língua Hebraica e Árabe, FFLCH-USP. Coordenadora do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação, do Departamento de História, onde desenvolve o projeto Arqshoah – Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo. Além do Dez Mitos Sobre os Judeus, publicou pela Ateliê Editorial: A Imprensa Confiscada pelo DEOPS – 1924-1954 (Vencedora do Prêmio Jabuti em 2004), em co-autoria com Boris Kossoy; Judeus e Judaísmo na Obra de Lasar Segall, este em co-autoria com Celso Lafer, e Livros Proibidos, Ideias Malditas. Pela editora Perspectiva: Preconceito Racial em Portugal e Brasil Colônia: O Mito da Pureza de Sangue, Séculos XVI ao XIX; O Anti-Semitismo na Era Vargas; Cidadão do Mundo. O Brasil Diante do Holocausto e dos Refugiados do Nazifascismo, 1933-1948; O Veneno da Serpente: Reflexões sobre o Anti-semitismo no Brasil. 

Conheça essa e todas as obras de Maria Luiza Tucci Carneiro publicadas pela Ateliê.

 

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