Sobre

Umberto Eco criou uma definição deliciosa e infalível para descrever o papel do editor de livros. É uma revelação por contraste e tão simples que, quem se apanhar um dia em dúvida a respeito do assunto, deve consultá-la. Para o escritor italiano, o que diferencia o negócio do livro do negócio do dentifrício bucal é que, à frente das editoras, estão homens de cultura, para quem o livro é mais do que um produto comercial. Do livro, diz Eco, saem ideias – sem nenhum demérito aos fundamentais fabricantes de pasta de dentes. Trata-se, apenas, de outro tipo de negócio.

Mistério do Leão Rampante (2.ed.)

A Ateliê Editorial surgiu em 1995 e seu negócio certamente não é fabricar dentifrício bucal. Já no primeiro título, a novela O Mistério do Leão Rampante, de Rodrigo Lacerda, estava contido todo o projeto editorial: a escolha criteriosa de um bom e saboroso texto, a aposta (sempre arriscada, do ponto de vista comercial) em um escritor iniciante, a inovação e o zelo aplicados ao produto final – o livro. De saída, o resultado foi o bom acolhimento dos leitores e um prêmio, o Jabuti, ainda a maior premiação brasileira no campo literário.

O projeto editorial não se moveu um grau para a direita ou para a esquerda durante esses dez anos – um período, digamos, turbulento. Nessa década, o Brasil promoveu a ascensão de um intelectual ao poder e em seguida substituiu-o por um inédito representante das classes produtoras, foi engolfado por uma globalização irresistível que faz do mercado a grande referência existencial, assistiu à explosão da cultura de massa com direito a cafés filosóficos e muito bumbum balançando na telinha e espiou uma intimidade indesejável por meio dos reality shows. Na escola fundamental e nas universidades, o número de alunos subiu, simultaneamente ao crescimento da desigualdade social – este ano, nos tornamos vice-campões mundiais na modalidade.

O mercado de livros acompanhou as contradições. Primeiro decolou a reboque de um plano econômico, tornando-se mais complexo e eficiente. Quem tem sorte de viver perto de uma livraria hoje (estima-se que, com muito otimismo, elas não chegam a duas mil em todo o país), encontra quase de tudo: boas e más traduções, livros bem e mal acabados, os chamados livros “difíceis” e, em destaque, os best sellers. Quando o Plano Real passou a enfrentar turbulências, o negócio caiu em conjunto. Hoje, anda meio deprimido. E isso traz de volta o amargo sentimento de que não temos uma cultura pujante o suficiente a ponto de produzir mais e mais leitores e oferecer a todos os diferentes prazeres do livro. Que fazer: correr para o negócio de pasta de dentes? Por que editar (bons) livros no Brasil, hoje?

Só o timoneiro da Ateliê Editorial poderia oferecer suas razões pessoais. Do agradável ponto de vista do leitor, entretanto, é fácil perceber por que o leme não foi alterado. A Ateliê Editorial cruzou a correnteza agitada e continua a fazê-lo. Escolheu dar vez a novos ficcionistas. Escolheu dar vez a ensaios de fôlego nascidos na academia sobre temas atuais e/ou relevantes em áreas como literatura, política, filosofia, artes etc. Escolheu caprichar na confecção do livro. Escolheu também não caçar best sellers – não haveria qualquer demérito em fazê-lo, mas foi a sua escolha. Mandou às favas uns tantos riscos e agarrou algumas oportunidades típicas de um país em que ainda tudo está por fazer. Editar, dar suporte às ideias, é preciso.

Finnegans Wake

Só assim se compreende a ousadia que beira à teimosia de publicar a versão em português do Finnegans Wake. Ponto alto da literatura moderna, o livro de James Joyce virou tabu entre leitores, editores e tradutores. Muita gente considerava sacrilégio a tradução do romance. Donaldo Schüler dedicou-se à missão de realizar a versão em português, e a Ateliê Editorial cuidou de imprimi-la em uma bonita e cuidadosa edição bilíngue de cinco volumes. Hoje, o Finnicius Revém – título em português da epopeia de Joyce – está aí, à disposição de um número de leitores nunca antes imaginado, num país que tanto precisa produzir novas formas de acessos à cultura e às ideias. Que o leitor, antes “proibido” de ler a obra, julgue a edição daqui para frente.

Auto da Barca do Inferno

O Finnicius Revém foi apenas uma faceta mais barulhenta da Ateliê Editorial. No campo das obras consideradas clássicas, o catálogo se expandiu silenciosamente em vários sentidos, línguas e tempos. Apareceram, entre outras, edições do hilário Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, do também divertido e desconcertante Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado, do fundamental O Primo Basílio, de Eça de Queirós, e do provocador Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Também Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, e Amers – Marcas Marinhas, de Saint-John Perse – em traduções devidamente premiadas. Os livros ajudaram a dar substância ao catálogo, mas a grande colaboração da Ateliê Editorial nesse cenário foi acrescentar “portas de acesso” a essas edições, ou seja, incluir apresentação e comentários claros que estimulam o leitor a encarar o desafio. Para isso contou com a orientação segura e eficiente do Professor Ivan Teixeira, que dirige as coleções Clássicos Ateliê e Clássicos Comentados. Outro ponto alto dessa série é a edição de Os Sertões, de Euclides da Cunha, com mais de mil notas objetivas e esclarecedoras assinadas por Leopoldo Bernucci que ajudam a compreender a obra – e o Brasil.

Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século

As venturas no mundo da ficção também continuaram. Entre elas, estão a dos contistas Thelma Guedes, com Cidadela Ardente, Bruno Zeni, de O Fluxo Silencioso das Máquinas, além de Marcelino Freire, de Angu de Sangue, um agitador nato que inventou ainda outra pequena e deliciosa empreitada: o “livrinho” Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, brincadeira do melhor nível que colocou alguns dos melhores escritores brasileiros para criar contos com no máximo cinquenta letras. Algumas apostas no arriscado campo da ficção trouxeram dividendos; outras, não, mas isso faz parte do risco inerente ao ofício do editor.

O Design do Livro

Há muito mais idéias espalhadas em coleções de arquitetura e urbanismo, restauração, biografia, teatro, política, filosofia, jornalismo, música… Em todas elas, está gravado um traço fundamental da editora: o apreço com a arte gráfica. E não é à toa que há duas coleções dedicadas ao assunto, a Artes do Livro, iniciada pelo clássico O Design do Livro, de Richard Hendel e a coleção O Prazer do Livro, que se iniciou com o primeiro livro escrito sobre o livro, Philobiblon de Richard de Bury, de 1344. O apuro e a invenção desaguaram no teste de tipologia e materiais diferentes, claramente usados nas edições dessas coleções. Ali, capas duras, inusitadamente espessas e rústicas, combinaram surpresa e elegância. Já é possível ver reflexo dessa aposta em livros de outras editoras.

O projeto editorial da Ateliê está em franco desenvolvimento. Talvez o papel mais importante desempenhado até aqui seja o de oferecer a mais e mais leitores acesso à boa literatura e às boas edições, derrubando um preconceito tolo que repousa na cabeça de parte da elite cultural brasileira e que dá a ela um sentimento de propriedade sobre o conhecimento. Essa postura generosa da Ateliê Editorial só pode ser entendida se compreendido o seu timoneiro, um homem que fala com todos e sobre tudo. – Jadyr Pavão