História de um Livro

Por Renata de Albuquerque

O livro A Democracia na França, de François Guizot, foi lançado no início de 1849 e, rapidamente, ganhou inúmeras edições em diversas línguas e países europeus. Tendo estudado Direito na Universidade de Sorbonne, tornou-se o titular da cadeira de História Moderna. Em A Democracia na França, Guizot critica o que seriam os “exageros” democráticos, como, por exemplo, o sufrágio universal, além de condenar comunistas ateus. É a recepção desta obra – e seus reflexos – que a Doutora em História e professora da USP Marisa Midori Deaecto estudou em História de Um Livro, que acaba de ser lançado pela Ateliê Editorial.  A seguir, a autora fala sobre sua pesquisa:

O que a levou a estudar A Democracia na França?

Marisa Midori Deaecto: Em 2016, a história da democracia começou a me chamar a atenção. E Guizot coloca várias questões que hoje parecem muito atuais em seu A Democracia na França, por exemplo: será que o voto direto e universal é um bom negócio?; será que a população tem discernimento para escolher seus governantes? Comecei a pensar sobre como uma opinião começa a ocupar o lugar de um fato. Se, nesse livro do século XIX, ainda não é possível ver o surgimento de fake news, a forma como a opinião se apresenta como um fato está lá. O panfleto teve muita ajuda para ser traduzido; o debate político passou a ser notícia; a opinião começou a ocupar o centro das atenções. Esse debate que Guizot pretendia fazer, sobre a democracia, realizando uma torção para convencer a população de que aquele era um debate rico para a opinião pública, me parece algo muito atual; algo que vemos hoje no Brasil; e no mundo de modo geral.

De que maneira?

MMD: A articulação entre o livro e o jornal, o fazer político, nasce ali. Fazer uma voz ser predominante é um fenômeno contemporâneo relacionado ao surgimento dos jornais, ligados a partidos políticos e a ideologias. Algo só se torna universal porque aparece na grande imprensa. Aqui em São Paulo, se uma notícia não sai na Folha ou no Estadão, não existe. No Rio acontece o mesmo com o Globo. Mas agora é preciso também pensar em um circuito paralelo, das redes sociais, que amplifica as vozes e também plantam notícias falsas. Com as mídias impressas isso era mais difícil, mas quem disse que os fatos e as opiniões não adquiriam outra dimensão por meio da transmissão oral? Falamos de fenômenos semelhantes, mas dados em escalas e tempos muito diversos. O livro de Guizot se sustenta exatamente na relação entre a grande imprensa e os partidos políticos. Seis meses depois do lançamento, já existiam incontáveis edições. Mas esse livro não é um clássico, ele tem a função de fazer um jogo político.

Por que estudar a recepção crítica de um livro como este que, em suas próprias palavras, é “um libelo contra a República e a democracia”?

MMD: Eu queria entender como a coisa funciona do centro político da Europa. Marx é contemporâneo de Guizot, que era conservador: perseguiu socialistas estrangeiros e os mandou para o exílio porque tinha poder, tinha acesso a jornais, editoras… hoje, na França, Guizot é pouco conhecido. No entanto, tanto ele, quanto Thiers, Tocqueville e outros pensadores de seu tempo nos permitem entender o programa conservador, as matrizes liberais conservadoras.

O que isso tem a ver com o Brasil?

MMD: O que Guizot diz está relacionado à classe dominante brasileira, à questão da propriedade. Dar voto e voz a quem não tem propriedade significa colocar essa propriedade em risco. Ora, em 2016 ficou claro que a díade distribuição de renda e igualdade provocam medo. A classe dominante brasileira, em 2016, colocou o país em risco ao apoiar o impeachment. Sabemos que é um pensamento imediatista, mas é assim que funciona a regra do jogo político do ponto de vista da burguesia brasileira. Ela não consegue focar no futuro do país.  

Como foi o processo de elaboração de A Democracia na França? Como foi possível que ela tivesse tantas traduções? Essas traduções são semelhantes entre si?

MMD: Redação e tradução eram quase simultâneas. No caso da tradução inglesa o processo se deu de forma simultânea, efetivamente. Eu me ative às edições de janeiro a julho de 1849, quando o livro foi divulgado no Brasil, porque me interessei pelos efeitos imediatos, da primeira onda de difusão. Creio que haja mais de 48 edições, mas só incluí aquelas com as quais tomei contato. 

As traduções são muito diferentes na forma. Na Áustria, por exemplo, saíram duas edições, em folhetos muito frágeis. Na Alemanha, há do folheto à brochura. As traduções são muito diferentes. Na Polônia, por exemplo, há duas traduções, uma em alemão e outra em polonês. A tradução em polonês é uma versão livre do conteúdo. Não há nem mesmo o texto integral.

E na edição brasileira?

MMD: Aqui não vemos grandes diferenças. É um trabalho fiel ao conteúdo que Guizot escreveu. Eu fiz o cotejo em folhetim e livro, aprovado por Guizot. Ela é bem fiel ao original. O traço mais peculiar é a publicação de um folhetim político, que não era prática corrente no país. Este é um aspecto inédito e particular, pois não há outros textos com essa característica publicados. Isso mostra que havia, sim, no Brasil, uma campanha contrária ao socialismo, ao sufrágio universal e à democracia.

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