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“Coração, Cabeça e Estômago”: o humor de Camilo Castelo Branco

A nova edição de Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco, da Ateliê Editorial, chega às prateleiras como um dos escolhidos a leitura obrigatória do vestibular da Unicamp. A edição busca ajudar o estudante a entender melhor a obra e, para isso, tem apresentação de Jean Pierre Chauvin, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, e notas e estabelecimento de texto feitos por ele e por José de Paula Ramos Jr., coordenador da coleção Clássicos Ateliê.

Para além da recomendação do vestibular da Unicamp, Coração, Cabeça e Estômago tem um humor que desperta a atenção do leitor e traz prazer à leitura. A seguir, Jean Pierre Chauvin fala sobre a obra:

Quais foram os principais desafios para o estabelecimento deste texto?

Jean Pierre Chauvin: Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco, data de 1862. De modo a cumprir a vontade do autor e apresentar a versão mais fidedigna possível da obra, o texto do romance foi cotejado com a sua segunda e última edição publicada em vida, ou seja, a versão de 1864. O trabalho, minucioso, foi realizado a quatro mãos, em produtiva parceria com o Professor José de Paula Ramos Júnior, docente do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, USP. Preservamos o texto original em sua íntegra, ao qual foram implementados ajustes que resultaram em atualizações na grafia e pontuação. Edições posteriores do romance também foram consultadas, com o objetivo de dirimir eventuais dúvidas, respeitados os critérios editoriais.

 

Que tipo de barreiras que o leitor brasileiro possa encontrar neste livro o trabalho de estabelecimento de textos e notas desta edição da Ateliê procurou minimizar? Como se deu a realização desse trabalho?

JPC: Creio que o maior obstáculo, para o leitor de hoje, estaria em compreender o léxico empregado pelo romancista português. Por ser uma obra de 1862 – redigida em linguagem castiça e em acordo com o vasto repertório do autor –, Coração, Cabeça e Estômago demandou cuidadoso levantamento do glossário da época, além de numerosas referências e dados culturais a que o autor alude. Este trabalho também foi realizado em parceria com o Professor José de Paula Ramos Júnior.

 

É possível dizer que este livro  é “um ponto fora da curva” dentro do contexto da obra de Camilo Castelo Branco, devido ao humor que contém, ou outras obras do autor também contam com esta característica?

JPC: Camilo Castelo Branco é reconhecido com um dos autores mais prolíficos da língua portuguesa, tendo legado mais de cento e trinta romances e novelas, compostos ao longo de sua carreira. Não se pode afirmar que se trate de um romance atípico, tendo em vista que o escritor alternou narrativas de diversos modos, temas e características, em que predominavam ora o motivo lírico, ora o tom jocoso. Chamaria a atenção para obras como Vinte horas de liteira e A queda dum anjo, acentuadamente pautadas pela ironia.

Camilo Castelo Branco

O humor de “Coração, Cabeça e Estômago” é talvez o aspecto que torna o livro mais conhecido. Este humor consegue divertir o leitor brasileiro do século XXI? Que outros atrativos ele terá na obra?

JPC: O humor se manifesta de várias formas, no romance. Afora as peripécias em que o narrador se envolve, há que se levar em conta o modo como ele maneja a linguagem, ora a conceder menor importância a fatos de grande relevo, ora a sobrevalorizar eventos que, aparentemente, não mereceriam maior atenção. Aí está um dos truques que realçam o traço humorístico e evidenciam o acento irônico do romance. Um leitor que admire e se divirta com a obra de Machado de Assis em nossos dias certamente reconhecerá em Camilo uma de suas matrizes estilísticas e temáticas.

 

Como se estrutura a metalinguagem neste romance?

JPC: Em diversas ocasiões, o narrador discute o ato de recontar os episódios que presenciou e, inclusive, os lances decisivos de que tomou parte. Além disso, há constantes interferências do protagonista nos episódios em andamento, na forma de digressões que relembram ao leitor o caráter convencional da arte literária e permitem-lhe extrapolar os limites do gênero e a filiação do romance, seja como obra romântica, seja como romance realista.

 

Machado de Assis

Há quem tente aproximar esta obra às “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, marcadamente graças à condição pós-morte estabelecida em ambas. O senhor concorda com esta aproximação? Por que?

JPC: A aproximação entre os romances é possível e produtiva, especialmente se considerarmos os constantes diálogos que ambos os narradores ensaiam com o leitor. No entanto, a condição do “defunto-autor”, concebida por Machado de Assis, soa ainda mais radical que a do romancista português. Em Coração, Cabeça e Estômago, o leitor toma contato com um relato aparentemente deixado para a posteridade; já em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o morto fala e, de certo modo, revive enquanto escreve: o tempo do relato e a modalidade do registro difere consideravelmente de uma narrativa para a outra. No que se refere ao enredo, há episódios que apontam relações intertextuais entre os romances de Camilo e o de Machado. Esse diálogo entre as obras sugere a admiração que o escritor brasileiro nutria pelo romancista português.

A obra está na lista de vestibular da Unicamp. A que aspectos da obra o estudante  deve estar atento, se o objetivo da leitura for o vestibular?

JPC: A seleção de Coração, Cabeça e Estômago para o vestibular é oportuna. Como experiência, a fruição do romance é prazerosa e, por isso mesmo, demanda maior atenção. O primeiro alerta diz respeito à advertência, também apontada pela crítica machadiana, de que se deve desconfiar do narrador camiliano. Por ser uma narrativa em primeira pessoa, seu ponto de vista é necessariamente parcial: o leitor acessa a uma das versões dos acontecimentos, segundo a sua ótica peculiar. Além disso, é preciso detectar os momentos em que o protagonista diz uma coisa para sugerir outra. Para isso, ele tece afirmações que afetam modéstia; elogia ações que, no fundo, condena; finge criticar atitudes que nos parecem louváveis. No que se refere à linguagem utilizada por Camilo, orienta-se que o leitor recorra às notas explicativas, de modo a captar precisamente o que o seu narrador descortina, disfarça ou esconde. Afinal, ele não diz o mesmo da mesma forma nas três partes da autobiografia. O seu temperamento muda em acordo com as fases da vida. Poder-se-ia afirmar que se trata de uma narrativa, por assim dizer, fisiológica.

 

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