Moleque de fábrica: a realidade de quem trabalha desde a infância

Por: Renata de Albuquerque

“Moleque de Fábrica”  é uma história dos sem história, a história ilógica dos seres humanos provisórios e transitórios da modernidade, da crise invisível do mundo do trabalho, da felicidade demarcada pelo abrupto de rupturas e de incertezas”, define José de Souza Martins, sociólogo,  Professor Titular e Emérito de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP. O livro, autobiográfico, conta sua infância e adolescência operárias. Ele conversou com o Blog da Ateliê sobre a obra:

 

Como foi a seleção dos assuntos, temas e episódios que fazem parte da obra?

José de Souza Martins: Não fiz uma seleção de assuntos, até porque não havia muito a selecionar. Vida de pobre e de trabalhador é, via de regra, uma vida enxuta, sem ocorrências espetaculares. Nada na vida do trabalhador se enquadra na categoria dos grandes acontecimentos sociais, históricos, políticos. O operário é o ser humano condenado ao repetitivo da linha de produção. A linha de produção se repete também nos outros âmbitos de sua vida, na vida doméstica, familiar, escolar, de lazer. Começa que, como no processo de trabalho, tudo tem horário, dominado e regulado pela fábrica. Sua vida é a do tempo dos minutos, o tempo linear da repetição. Seus diferentes momentos são iguais. O trabalhador é o produto de um processo econômico e histórico que é reprodutivo. Ele próprio é uma reprodução, recriação modificada do que foi seu pai e foram seus avós. Mas, ainda assim, o mesmo. A produção fabril gera, portanto, uma mentalidade, um modo de vida. Assim, o tempo do livro é o tempo da mesmice. Aas próprias diferenças no interior das circunstâncias peculiares são subjugadas pela repetição.

 

O sr. escreve que a sociologia peca por ter sucumbido a uma visão adulta da vida. Por quê?

JSM: Os parâmetros para descrever e explicar a vida das pessoas são parâmetros da vida adulta, os daquilo que conta na existência de cada um. As pessoas não nascem para ser crianças. Nascem para não ser crianças. Boa parte de minha narrativa, nesse livro, é para propor uma compreensão daquilo que fui não sendo, como ocorre com todas as crianças e adolescentes. Tanto a socialização dos imaturos quanto sua educação destinam-se, justamente, a converter a criança em adulto no menor tempo possível. Isso é claro na classe operária. Em minha geração, as crianças nasciam para o trabalho, para aquilo que as definiria como adultas. Meia hora depois de eu ter nascido, meu pai me pegou no colo pela primeira vez e avisou toda a família reunida ao redor do meu leito de nascimento e determinou que eu faria a escola primária até os 11 anos de idade e, em seguida iria trabalhar na carpintaria de seus primos para aprender a profissão de carpinteiro. Com 30 minutos de vida meu destino já estava traçado e minha infância devidamente demarcada e abreviada. Infância, no sentido pleno da palavra, era e é coisa de gente rica.

A sociologia trabalha com os temas que contam, isto é, com os da condição de adulto: estruturas sociais,

processos sociais, significações, funções sociais. Pouco disso tem a ver com criança.  O que permanece e não aquilo que acaba no âmbito da brevidade da condição de imaturo. Os temas da maturidade, os que contam na continuidade da sociedade e não os que dessa continuidade discrepam, como os da infância.

No entanto, a infância é o repositório da memória, isto é, dos momentos e das concepções provisórias da imaturidade, do não ser, de quem ainda não é. A memória do que não foi, daquilo que permite ver e compreender em outro parâmetro aquilo que veio a ser, o triunfo do repetitivo e da reprodução na socialização das crianças. A memória é a referência que faz com que os que não contam vejam criticamente o que a sociedade é, o que nela falta, o inacabado e o usurpado. Ignorar a realidade social

 

da criança e do adolescente, como referência para compreensão da realidade social do adulto, empobrece e limita a sociologia e a compreensão sociológica da sociedade em que vivemos. Está não é apenas uma sociedade de adultos. É também uma sociedade de crianças e de adolescentes.

O período histórico que o livro abrange é bastante longo e intenso. Quais foram, para sua história (e, consequentemente, para o livro) os momentos mais marcantes?

JSM: Os momentos mais marcantes são os momentos não marcantes, os que reiteram a insignificância da personagem biografada. Crianças e adolescentes não são personagens marcantes. O que em suas vidas é marcante não lhes pertence nem lhes diz respeito. O que é marcante na sociedade dessa biografia é dos adultos e poderosos. O período de referência do livro é o da nulificação histórica da criança que trabalha e, de vários modos, também do trabalhador adulto. A sociologia resgatou teoricamente a dimensão criativa da práxis do operário, é o que o faz personagem marcante da história social. Mas frequentemente deixa de lado a contradição necessária à realização dessa historicidade que é do repetitivo e do cotidiano que dele decorre.

O autor e seu irmão, em foto de 1944

O sr. escreve que “aos olhos dos biógrafos e dos intelectuais há um certo triunfo pessoal em deixar de ser operário, como se essa condição social fosse uma maldição”. Em seu caso, ao contrário, a condição operária foi acolhida, transformada, ressignificada dentro de sua obra. Como foi esse processo, de descoberta de que “minha história pode se transformar em um livro”?

JSM: O que pesou muito na escrita do livro foi que diferente de tudo que se diz, sobretudo nas ciências sociais, a sociedade do bairro operário em que nasci e cresci e as fábricas em que trabalhei não era a sociedade de lugares em que as pessoas se sentissem infelizes pelo fato de que seu mundo fosse o mundo operário. As crianças e adolescentes eram mandadas para a fábrica pelos pais, para serem operárias. Os heróis de minha rua eram operários. Nós brincávamos de trabalhar, usando as ferramentas que toda casa tinha para fazer nossos próprios brinquedos, juntos, na calçada, com matéria-prima achada no lixo. População majoritariamente originária da roça, o mundo fabril exercia sobre ela um imenso fascínio: salários maiores, vantagens inimagináveis no campo, como o abono de natal, as férias. “Ter futuro” era ser operário. Isso explica a reação de minha mãe quando lhe comuniquei que estava saindo da fábrica para estudar e ser professor. Trouxe-me os papéis para que eu me aposentasse como inválido.

Minha disposição para escrever o livro tem muito de reação à mentalidade de classe média que frequentemente domina os estudos sociológicos e políticos sobre a classe operária. Eu quis produzir um documento vivencial, antropológico sobre a realidade sociológica da condição operária. Mesmo nas orientações de esquerda há muito de fantasioso sobre a condição de trabalhador que é aí um trabalhador sem contradições, de desencontros, de descontinuidades, de certezas temporárias, a esperança de horizonte nebuloso, de riso e pranto.

Pessoas que passam de crianças a adultas, o crescimento como avanço harmonioso da biografia, sem rupturas nem sobressaltos, não podem perceber isso. A suavidade do percurso tinha, naquela época, reconhecimento numa cartilha da escola primária, muito popular, cujo título era Caminho Suave. No entanto, especialmente em famílias que migravam e migram da roça para a cidade, como a minha, e, depois, se debatiam com os obstáculos de alienação, de aprendizado e de socialização na vida fabril, não havia nem há suavidades e evoluções. Há rupturas, descontinuidades, abismos a vencer, desde o jeito de comer e do que comer, até o jeito de falar e de pensar.

O autor com a mãe e o irmão, em 1948

Relatar a infância trabalhadora, principalmente de forma autobiográfica, é pouco usual. Por que resolveu usar esse recorte em seu livro?

JSM: Porque sou isso. Meu irmão é isso. Meus antigos amigos e colegas de trabalho eram isso. Isso é tudo que tenho para contar, é meu patrimônio biográfico: uma infância de trabalhador. A infância ignorada e desconhecida dos estudos sobre a infância e dos estudos sobre a classe trabalhadora.

O tema do trabalho infantil poderia parecer autocomiseração ou mesmo despertar “pena” no leitor. Mas isso não acontece. Evitar esse tom foi uma escolha consciente? Como o senhor conseguiu chegar a esse resultado?

JSM:  Trabalhador não tem pena de si mesmo nem tem porque tê-la. Quando tem pena, como se vê em alguns ex trabalhadores que hoje fazem política, é fingimento, teatro. Mau teatro. O lado mais rico e belo de suas vidas é, justamente, o de quando estavam na linha de produção, envolvidos no fascínio de transformar matéria-prima em coisa útil, um trabalho criativo, os relacionamentos do encontro que é próprio da fábrica e único.

Cheguei ao livro porque apenas narrei, contei, como me pediram minhas filhas que o fizesse. Lembrei-me de minha avó paterna, a Mãe Maria, como a chamávamos, que era analfabeta e, ao mesmo tempo, uma excepcional contadora de histórias. Para ela, a narrativa verbal da vida tinha estilo.

O autor no curso secundário noturno (1956), pago pela fábrica

Na conclusão do livro, o sr. cita o fato de que a luta da classe operária que é retratada, em geral, é uma luta “iluminada” e que há pouco registro de histórias operárias porque a literatura não consagra esse tipo de abordagem. Nesse contexto, como foi o trabalho de escrever “Moleque de Fábrica”? Houve uma preocupação em tornar a história “mais atrativa” em algum momento?

JSM:  Houve apenas a preocupação de não cair na cilada e na tolice de fazer do livro uma falsa história do “melhor de mim mesmo”. Não era necessário tornar a história mais atrativa porque a narração da vida é sempre atrativa, pelo bom e pelo ruim. Se nessa história há um final feliz, não é ele a chave da narrativa, pois marcada por momentos infelizes. Há no livro uma epistemologia dos momentos em confronto com a precedência epistemológica de que biografia é uma história pessoal demarcada por uma conclusão feliz ou heroica, o pressuposto do fecho, do finalmente, que tende a marcar histórias pessoais numa sociedade como a nossa.

Moleque de Fábrica é uma história dos sem história, a história ilógica dos seres humanos provisórios e transitórios da modernidade, da crise invisível do mundo do trabalho, da felicidade demarcada pelo abrupto de rupturas e de incertezas. Minha história é uma história do entretanto, próprio dos que nascem para o trabalho e para viver as incertezas do trabalho em terra alheia e do trabalho em fábrica alheia, a dos que não nascem nem vivem para si mesmos. O oposto das histórias triunfais. Na vida subjugada pela linha de produção, só o lucro triunfa, só a coisa não a pessoa. Sobram as migalhas que alimentam a vida de gente como eu e a insurgência intelectual dos que como eu puderam e podem ver o mundo através das frestas e por esse meio descobrir a eficácia revolucionária da insignificância.

Ainda sobre esse assunto: enquanto escrevia o livro, os dramas retratados a partir de sua memória pessoal lhe pareceram uma boa matéria-prima literária dentro desse contexto mais “tradicional” ou o sr. percebia que estava produzindo algo novo, com força de ineditismo?

JSM: Só me propus a escrever o livro porque convencido de que a narrativa seria original e inédita. Porque o contraponto da fábrica, desde minha infância, me mostrava que nem eu nem as pessoas iguais a mim correspondiam ao que diziam que as pessoas eram e são: nem o padre na missa, nem o pastor na igreja, nem a professora na escola nem os que gostam de mandar nos outros em todos os lugares. Eu podia ver o que outros não viam. Minha memória me dizia e ainda diz isso. Na Universidade isso ficou claro para mim. Já nos primeiros dias de convivência com colegas e professores era evidente que eles julgavam saber tudo o que era a classe trabalhadora, o que não coincidia com o que eu, meus parentes, meus vizinhos, meus amigos havíamos sido e continuávamos sendo. A arrogância e o desprezo da classe média acadêmica me mostravam a mim mesmo como um documento vivo da história social. O alienado movimento estudantil de 1968 na Faculdade de Filosofia da USP me convenceu da importância documental da minha diferença vivencial. Eu tivera o privilégio de viver e conhecer o que o mundo desdizia do conhecimento formal. Eu sou a consciência do entretanto, do vir a ser, dos textos que não foram escritos, do silêncio que lateja nas entrelinhas da história social dos simples, a história do vivido e do inexplicável. Moleque de Fábrica é uma confissão explicativa.

 

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