A Questão da Ideologia no Círculo de Bakhtin

Por Renata de Albuquerque

 

O intelectual russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) é uma das mais importantes referências de análise do discurso em termos linguagem e literatura, tendo estudado noções, conceitos e categorias de análise da linguagem com base em discursos cotidianos, artísticos, filosóficos, científicos e institucionais.  O  chamado Círculo de Bakhtin é grupo multidisciplinar de intelectuais russos, que incluía, além de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev. Eles se reuniram regularmente entre 1919 e 1929 e uma de suas mais importantes contribuições às ciências humanas foi foi enxergar a linguagem como um constante processo de interação mediado pelo diálogo – e não apenas como um sistema autônomo. Em A Questão da Ideologia no Círculo de Bakhtin, Luiz Rosalvo Costa organiza sua pesquisa em dois eixos centrais: a  compreensão de que a produção sígnica (verbal e não-verbal) é o lugar de materialização das relações entre as determinações do sistema econômico e as formas de significar e atribuir sentidos à realidade; e a análise da divulgação científica como um campo privilegiado de reflexo e refração do conjunto de transformações pelos quais passa o sistema produtivo e a sociedade de um modo geral. A seguir, o  mestre e doutor em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) pela USP, onde atualmente realiza estágio de pós-doutorado. Integra o grupo de pesquisa Diálogo, fala sobre seu livro recém-lançado:

O que o motivou a estudar Bakhtin com o recorte feito em sua tese?

Luiz Rosalvo Costa: A minha pesquisa de doutorado, na verdade, é um desdobramento do estudo que realizei no mestrado, que também foi sobre o discurso da SBPC e também utilizou como base teórica o Círculo de Bakhtin. O doutorado foi, então, uma oportunidade para aprofundar um pouco mais o conhecimento sobre a concepção de linguagem desenvolvida por esse grupo de estudiosos russos. E este é um ponto crucial: embora a recepção ocidental da obra tenha transformado Bakhtin no centro dessa produção intelectual cujas bases se desenvolveram nas décadas iniciais do século XX na Rússia/União Soviética, estudos mais recentes vêm dando conta de que na realidade as coisas talvez não fossem bem assim, e que, no tocante à reflexão sobre a linguagem, havia no grupo dois outros intelectuais tão ou mais importantes que Bakhtin: Valentin Volóchinov e Pável Medviédev. Então essa foi uma das grandes motivações do meu estudo: conhecer um pouco mais sobre a relação entre os trabalhos desses três autores e, ao mesmo tempo, sobre o modo como esses trabalhos se articulavam em uma concepção de linguagem de fundo comum.

 

Por que a escolha de debruçar-se sobre os enunciados da Revista Ciência Hoje?

LRC: Neste caso também se trata de um desdobramento do estudo realizado no mestrado, que tinha se voltado para o discurso da SBPC materializado nos editoriais da revista Ciência Hoje na década de 1980. Esse estudo (do mestrado) mostrou que a revista Ciência Hoje (por sua linha editorial, concepção gráfica, espectro de temas e assuntos e, em especial, por seus editoriais) constituiu-se em um dos principais instrumentos de que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, lançou mão para participar ativamente do debate que naquele período se desenrolava no País sobre a necessidade e os rumos da chamada redemocratização. Nessas condições, a atuação da revista se caracterizou (e os seus editoriais evidenciavam isso exemplarmente) por uma forte politização e uma considerável retorização, traduzidas, entre outras coisas, pela utilização de procedimentos estéticos e discursivos que tinham como propósito defender uma determinada concepção de sociedade e de política. Então a ideia no estudo de doutorado foi voltar à revista em um outro período, a fim de verificar se e de que maneira grandes transformações ocorridas nas últimas décadas se refletiam e se refratavam em suas concepções e práticas.

Que desafios encontrou durante esse percurso de estudos?

LRC: Penso que o principal desafio (e talvez fosse mais apropriado dizer ‘o principal problema’) foi o acesso ao material necessário para fazer a pesquisa, e aqui me refiro especialmente à bibliografia do próprio Círculo de Bakhtin e à bibliografia sobre o Círculo de Bakhtin. Apesar de todos os avanços e ‘facilidades’ decorrentes do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e de informação, enfrentei algumas dificuldades no acesso a certos textos com os quais precisava trabalhar. Só para exemplificar: há um texto de Bakhtin chamado Problemas da obra de Dostoiévski, que foi publicado na URSS em 1929. Muitos anos depois, em 1963, foi publicada uma nova versão (revisada, modificada) desse texto sob o título de Problemas da poética de Dostoiévski. A despeito de tudo o que possam ter em comum, os livros não são a mesma coisa. São, no mínimo, duas versões diferentes, produzidas em momentos diferentes, em diálogo com circunstâncias e realidades histórico-sociais diferentes etc etc. Ocorre que no mundo ocidental o livro que acabou ganhando proeminência foi o de 1963, o que é demonstrado, por exemplo, pelo fato de apenas essa versão ter sido traduzida para o português, o inglês, o espanhol e o francês. Como trabalhei com as traduções, tive que sair buscando alternativas quanto a isso, porque era fundamental fazer uma discussão sobre a primeira versão do livro, publicada por Bakhtin em 1929. Questões centrais (por exemplo: a relação de Bakhtin com o marxismo, a articulação do seu trabalho com os trabalhos de Medviédev e Volóchinov etc.) não poderiam ser adequadamente abordadas sem o recurso a esse texto. Afinal, acabei encontrando uma tradução para o italiano (em uma ótima edição, aliás) e foi com ela que pude, então, comparar as duas versões do livro.

Felizmente para os pesquisadores brasileiros atuais que não trabalham diretamente com o original em russo, há uma boa notícia. Informações dão conta de que uma tradução do livro de 1929, feita diretamente do russo, está sendo preparada. Vamos aguardar.

 

A questão da presença do marxismo em Bakhtin é bastante polêmica. Como, em sua tese, lidou com este aspecto teórico? De que maneira isso interferiu na sua análise?

LRC: Essa é realmente uma questão difícil e foi justamente um dos pontos tratados na tese. De modo geral, as posições dos comentaristas e estudiosos do Círculo situam-se entre dois extremos. Em um deles, caracteriza-se Bakhtin como um marxista. No outro, ele é qualificado como um antimarxista radical. A posição que defendi na tese e que, creio, pode ser demonstrada pela leitura dos textos do Círculo é que Bakhtin nem era marxista nem antimarxista. Era, sim, um estudioso e um pesquisador que teve com o marxismo uma relação ambígua. Por um lado, ele próprio chegou a declarar que nunca foi marxista e que, portanto, o marxismo não era uma das suas referências teóricas fundamentais. Por outro lado, há várias passagens e formulações em seus textos que estão claramente em diálogo (para dizer o mínimo) com proposições marxistas. Uma das coisas que se pode dizer sobre isso é que, mesmo não tendo o marxismo como sua principal referência teórica, não seria possível a Bakhtin ficar imune à presença dessa corrente teórica, dado que o marxismo em grande medida hegemonizou (primeiro como teoria revolucionária e depois, na versão stalinista, como uma espécie de corruptela transmutada em pensamento oficial do Estado) o ambiente intelectual em que Bakhtin produziu a sua obra. É importante dizer, no entanto, que se em relação a Bakhtin existe essa ambiguidade, o mesmo não ocorre com Volóchinov e Medviédev, que tinham na vida institucional soviética uma atuação muito mais expressiva que Bakhtin, e cujos textos se apresentavam como orientados diretamente por uma epistemologia marxista.

 

É possível perceber uma mudança no discurso de divulgação científica durante o período estudado? De que maneira essa mudança aconteceu? Que direção esse discurso tomou?

LRC: Sim, minha tese propõe exatamente uma leitura no sentido de que, durante a década de 1980, sob os influxos, condicionamentos e determinações da realidade histórico-social daquela época, o discurso de divulgação científica da SBPC na revista Ciência Hoje, inscrito em um projeto modernista de atuação, era marcado pela politização e pela retorização. Um dos efeitos disso é que o discurso da revista nesse período, materializado nos seus diversos enunciados,  era atravessado por posições associadas a matrizes ideológicas presentes na sociedade, que debatiam sobre os rumos do país, o estatuto das relações entre Estado e sociedade civil, o papel da ciência e dos cientistas na vida social etc. Nas décadas de 1990 e 2000 esse quadro muda um pouco e o discurso da revista passa aos poucos a assumir uma certa despolitização, traço refletido também nos seus editoriais, cujas mudanças vão no sentido de torná-los menos uma afirmação do ponto de vista da revista e mais uma apresentação neutra do conteúdo da edição.

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