Traduzir é uma ação política

Por: Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa*

 

Há muitas maneiras de se posicionar politicamente. Uma delas é traduzir. Escolher os clássicos gregos para verter ao português brasileiro é também um ato político. Em primeiro lugar, porque os gregos formaram, filosófica e literariamente, muitas das culturas ocidentais. Entender e conhecer o mundo helênico já é meio caminho andado para detectar as escolhas de múltiplos povos. Em segundo lugar, porque lá se plantaram raízes que ainda hoje dão frutos variados (decorrentes de escolhas mais ou menos acertadas) até mesmo nas terras brasílicas. Na literatura, por exemplo, vê-sea genética grega nas obras de Machado de Assis, Ariano Suassuna, João Guimarães Rosa, Dora Ferreira da Silva, Milton Hatoum, Chico Buarque de Hollanda, Ana Martins Marques e tantos outros.

O modo de lidar com a invenção de cidades e das formas de convivência urbana é, igualmente, um ato político. Com seus traumas e soluções próprias, o modo de viver coletivo transparece de forma diversificada, limpa e bela nas filosofias e literaturas de cada terra. Das palavras dos gregos, vários regimes de governo germinam.O senso comum difunde que eles inauguraram a democracia. Entretanto, esses clássicos que chamamos gregos inspiraram e inspiram não só monarcas sábios e oligarquias, mas também tiranias. De Édipo a Sócrates, muitas opções há de como governar. Conhecer as palavras da velha Hélade é percorrer um substrato basal que permite trocas e mudanças de posição com muita gente diferente: franceses, ingleses, norte-americanos, japoneses, indianos, alemães, árabes, australianos, portugueses, italianos, espanhóis, argentinos, chilenos, brasileiros… Através dos tempos, corpos e mentes desse mundão afora leram áticos, jônios, dórios e espartanos (sim, pois o conceito de “grego” tampouco é uno e monolítico). Nessa gente toda, palpitam ideias conflitantes nascidas desse terreno filosófico e literário que ainda lemos contemporaneamente. Cada língua, cada país, cada indivíduo escolhe o que mais palatável, saboroso, afim e útil lhe parece.

Assim também o tradutor. No momento da escolha de uma obra, já começa sua ação política. O que traduzir, como e por que, cabe a ele, de fato, definir. É também ele quem determina se os antigos falarão como subalternos, tiranos, democratas, oligarcas ou deuses inacessíveis e inabordáveis. Ao tradutor é dado arrebatar do dicionário a palavra que definirá, por exemplo, a famigerada πόλις: se pólis, metrópole, cidade, urbe, vila, pátria, torrão natal, província… E cada opção revela intenções e comprometimentos. Da mesma maneira, cada um lerá o que escolher, sob o influxo do afeto que carregar à hora da leitura. As escolhas de um tradutor e de um leitor vão do léxico à sintaxe, da clareza à obscuridade, do gênero textual ao tom que se dá na intepretação desse gênero; dependem do ritmo de leitura, da moda, do mercado, da circunstância ou mesmo de uma intervenção da sorte (para os gregos, τύχη, para os latinos, fortuna)…

A minha eleição é pelo teatro, manifestação que considero política já no nascedouro. As traduções que procuro fazer são quase sempre coletivas. Talvez esse tipo de arte tenha mesmo a cooperação como exigência de fundo, pois decorre do esforço do poeta e do tradutor congregado ao do elenco, do diretor, do cenógrafo, do iluminador, do figurinista e de toda uma equipe nos bastidores…Baseio-me, preferencialmente,nas pesquisas de Ariane Mnouchkine e de Augusto Boal. Isso significa adesão ao processo colaborativo de criação durante o desenvolvimento da tradução, flexibilidade hierárquica e comprometimento com a formação intelectual de um público diversificado. Por isso, tais traduções buscam se pautar por acessibilidade, horizontalidade e flexibilidade nas relações entre texto e espetáculo.O meu trabalho é permeado sempre por um ”nós”.

São traduções de natureza processual e aplicada, marcadas pela preocupação funcional, rítmica, sonora e interpretativa. A prosódia é imperativa: buscamos frases e palavras confortáveis para o ator, pois o texto precisa ser “falável”, agradável e compreensível. Sob a influência de Boal, nossa meta é pedagógica, política e extensiva a todos que a acolham; em razão disso, os textos de base para a tradução são tomados dentre os que estão no domínio público.

Há bons portais na internet de textos gregos, constituídos por um repositório comum e um saber partilhado tornado público; por motivos óbvios, não ferimos direitos autorais; parte da publicação é doada – porque financiada por órgãos governamentais – e os espetáculos são gratuitos e itinerantes.

Eu, particularmente, gosto de pensar que, assim, mesmo trabalhando com um legado tão refinado e acessível a tão poucos, posso estar fazendo democracia. Acredito que conhecer a cultura helênica é buscar compreender,lidando e dialogando, o humano com culturas de facetas múltiplas e de posições políticas particulares em todasas partesda terra. Isso alarga nosso campo de visão e nos torna capazes de trocar ideias; saímos de nós mesmos e comunicamo-nos facilmente com todos os que têm por território comum a cultura que chamou de γαῖα aquilo que chamamos terra.

 

*Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa é Professora Titular de Língua e Literatura Gregas na Universidade Federal de Minas Gerais. Tradutora de Medeia, Electra e Orestes pela Ateliê Editorial. Diretora da Trupe de Tradução de Teatro Antigo (Trupersa) e coordenadora do Grupo de Tradução de Teatro (GTT/CNPq/UFMG); bolsista de produtividade pelo CNPq.

 

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