Livro “A Descoberta do Frio” aborda o racismo no Brasil

O escritor Oswaldo de Camargo fala de sua motivação para escrever o livro, que agora ganha reedição da Ateliê

Por Oswaldo de Camargo*

Oswaldo de Camargo_crédito Clarissa Di CiommoComecei, com 16 anos, a escrever versos, no geral escorados nas minhas leituras de poetas românticos e parnasianos, depois nas de alguns poemas do simbolista negro Cruz e Sousa. Eu já havia passado por experiências bem dolorosas, como a orfandade, com a perda da mãe aos seis anos, e pai, aos sete.

Como escritor, a cidade em que nasci, Bragança Paulista, tem extrema importância. Ali começou o rastro que até hoje me impulsiona a escrever, na tentativa de desvendar a razão daquilo que me levou a mim, minha família e a tantos negros de minha geração à borda da quase miserabilidade.
Percebi, após, que o que eu queria expressar não podia ser pelo verso, nem pela metáfora pura, mas pela prosa. Escrevi e publiquei, então, pela Editora Martins, O Carro do Êxito (contos), 1972. Depois enveredei pela novela com A Descoberta do Frio, cujo inicial enredo foi uma tentativa de escrever teatro.

O Carro do Êxito, A Descoberta do Frio, bem como minha recente novela Oboé, publicada pela ECA, da USP, graças ao empenho de Plínio Martins, se inserem em uma linha ficcional e poética que vem sendo estudada e vista como Literatura Negra, a qual pode ser datada, nos meados do século XIX, a partir dos versos de “Quem sou eu? ou Bodarrada”, do precursor do abolicionismo no Brasil e poeta Luís Gama.

Por que negra?

Porque, após séculos sem fala, o negro pôs se a expor e continua expondo, com ficção ou poesia, suas experiências particulares, sua visão da história pátria, que, acredito, vem secularmente trazendo consequências infelizes ao seu viver. Sou, pela persistência no tema, um dos mais antigos nesta temática.

Descobertafrio_fioA Descoberta do Frio traz, bem disfarçados, em vários capítulos, fatos de minha própria história de negro brasileiro. A escritaé de alguém que trabalhou por muito tempo o verso, a linguagem imagística. Se eu tentasse fazer uma obra de não ficção, eu depararia com dois fatores: não tenho vocação para pesquisa, para o texto de análise social ou histórico, etc. Por outro lado, só vou adiante quando algo me entusiasma.

E a Literatura, desde o início, me entusiasmou, tornou-se a minha segunda vida, já com os poemas, já com a prosa, a partir de O Carro do Êxito. Em muitos aspectos, A Descoberta do Frio é livro de quem conhece o “frio” e tenta mostrar a cara horrenda dele com beleza e estética, fatores fundamentais para o convencimento em arte.

Fato que não posso ocultar é que, com 13 anos, tive o primeiro vislumbre do preconceito ou, mais grave, racismo em nosso país. Minha resposta, a que mais me entusiasma, é escrever.

Como escritor, reconheço também que tive muita sorte, pois, logo que saí do Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto (SP), em 1954, pude conhecer, na Associação Cultural do Negro, no Prédio Martinelli, hoje Edifício América, escritores que eu admirava, como Afonso Schmidt, Colombina, Nestor Gonçalves, Solano Trindade, Abdias Nascimento, Florestan Fernandes, muitas vezes ali presente, e que prefaciou meu livro 15 Poemas Negros.

Tive sorte porque, filho de apanhadores de café, em uma fazenda de Bragança Paulista, pais analfabetos, pude com o tempo avaliar a importância fundamental do livro e da leitura para a melhor e mais prazerosa vida das pessoas. Também para que o “frio” seja descoberto e combatido.

E o que li de ficção?

Após a poesia, me aproximei de autores de variado naipe, como Adonias Filho (Memórias de Lázaro), O Encontro Marcado, do Fernando Sabino, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ficção de Dostoievski, Hermann Hesse, Kafka, o nigeriano Amos Tutuola. Negro ou branco, pela leitura somos todos miscigenados…
É preciso ficar claro: n´A Descoberta do Frio, “frio” é o preconceito, digo mesmo, o racismo. Sobre este, vem montada há séculos a Indiferença, o quinto cavaleiro do Apocalipse.

Alguns estudiosos têm apontado que, em vários aspectos, A Descoberta do Frio consegue mostrar, com ficção, por que a existência de grande parte da população negra brasileira continua, de vários modos, difícil, dolorosa, mesmo amarga.

A maior esperteza dos que pretenderam manter privilégio e poder, após a Abolição, foi manter o negro analfabeto.
Se tivesse aprendido a ler…

*Oswaldo de Camargo é escritor e jornalista

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