Um Novo Eça de Queiroz

Severino Francisco | Correio Braziliense | Seção: Diversão & Arte | Pág. 4 28 de fevereiro de 2015

Biografia premiada revisita a trajetória do escritor português e reconstitui aspectos ainda não explorados da vida e da obra . Polêmica de Machado de Assis é um dos pontos de destaque.

ecaEça de Queiroz, um dos mestres da língua portuguesa, já foi tema de estudos e biografias elaborados por intelectuais de primeira linha, da categoria de Álavro Lins ou João Gaspar Simões. No entanto, nem tudo havia sido pesquisado ou deslindado na sua trajetória. O arquiteto português Alfredo Campos Matos revisitou a vida e a obra de Eça e escreveu a mais completa biografia do autor de Os Maias. O catarpácio de quase 600 páginas pode meter medo em uma primeira mirada. Mas a impressão se dissipa logo nas primeiras páginas, em razão da prosa elegante, agradável, límpida e fluente. Em Portugal, o livro ganhou dois prêmios literários importante: O Grande Prêmio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Portuguesa de Críticos. Em Eça de Queiroz: Uma Biografia, Alfredo reconstrói fios delicados da trajetória de vida do estilista português: o não reconhecimento pleno da filiação pelos pais, a repercurssão da polêmica desencadeada por Machado de Assis, o “ecismo” no Brasil, a conexão pelo humor, a devoção religiosa e o estilo, a um só tempo, sinuoso, insinuante, preciso, fluído e impregnado de cor.

Qual a repercussão na vida e na obra de Eça de Queiroz do fato de não ser plenamente reconhecido pelos pais na condição de Filho?

A ilegitimidade de Eça teve na sua obra a maior das repercurssões pelo fato de tal complexo ter abalado enormemente sua personalidade. Desenvolvo este tema, ao que suponho, de forma completa na minha biografia. Ele tem sido aliás abundamente estudado, nem sempre racionalmente e a luz de todos os documentos de que dispomos. Eça sofreu sempre com essa circunstância muito particularmente por ter sido educado sem mãe, e abandonado desde a nascença.

Esse foi para mim o seu maior trauma. Quando foi viver com os pais, já adulto, em Lisboa, logo após a formatura em Coimbra, fê-lo pela primeira vez. Pela primeira vez, soube o que era ter um lar. A mãe tinha um feitio muito especial e ainda hoje se especula sobre as razões que a teriam levado a abandonar o filho. O pai foi conivente desta situação, a que decerto não pôde acudir, redimindo-se depois ao subsidiar o seu primeiro romance.

E qual o impacto na obra?

A sua obra ressente-se deste fato pois não há casais felizes nela, com a excepção de Alves & Cia e da A Cidade e as Serras. Por outro lado, para superar a sua inferioridade social, Eça procurou afirma-se e transcender tal condição tirando partido da sua vocação e desse “dom dos deuses”, que é a escrita, como escreveu. Quando, por sua vez, teve um lar, esmerou-se em atenções com a família e com os filhos, como se imaginasse o papel da harmonia e do amor no desenvolvimento psicológico das crianças. Enfim, poderemos concluir que como alguém disse, não há melhor do que uma infância infeliz para enriquecer a personalidade de um criador. A de Eça era bastante complexa e densa e tal fato teve reflexos profundos bem palpáveis na sua escrita.

Qual a relevância da atividade de Eça de Queiroz como jornalista em sua formação de escritor?

Podemos dizer: foi por meio da sua atividade como jornalista e autor de folhetins fantasitas, que produziu os seus primeiros textos que o lançaram como escritor e admirável cronista. Mais tarde, a colaboração importantíssima que deu à Gazeta de Notícias do Rio, confirmaram a sua categoria. Como se sabe, após o curso em Coimbra, produziu só, durante meses, um jornal em Évora, o Distrito de Évora.

Nelson Rodrigues afirmou que era um leitor contumaz de Eça de Queiroz e chegou a reler Os Maias seis vezes. Como explica a chamada “ecite”, a paixão dos brasileiros por Eça?

Há em Eça afinidades profundas com o temperamento brasileiro, desde logo por meio da admirável simplicidade da sua prosa, da sua ironia e, sobretudo, do seu humor. Depois, temos que confessar que os brasileiros que se sentem complexados pela colonização portuguesa sentem um secreto prazer com a leitura de descabeladas tundas que Eça dá a Portugal e aos portugueses, pelo desejo de ver a sua pátria mais progressiva, mais justa e mais a par dos países mais adiantados da Europa.

Quais as relações de Eça de Queiroz com o Brasil?

Foram múltiplas e são deveras importantes, muito particularmente as que o relacionaram com Machado de Assis, que fez uma crítica predominantemente moral ao “naturalismo-realista”. Em todo o caso, Eça lucrou com essa crítica que o ajudou a libertar-se das cadeias de escola literária que poderiam ter prejudicado a sua liberdade de imaginação e fantasia. Mas o grande Machado não lucrou menos, pois os dois grandes romances realistas do seu confrade provocaram em si um tal abalo que o fizeram mudar de singradura. Tal como Eça, era, todavia, um dissimulado, escondendo as suas reações e opções. Ambos guardaram o melhor para si. Ao longo da sua vida (sem esquecer as ligações biográficas como o Brasil – o pai era brasileiro), Eça teve ínumeros contatos com brasileiros e com representantes superiores da sua cultura, tendo convivido intensamente em Paris com um grupo de notáveis, de que destacamos Domício da Gama e Eduardo Prado, um dos seus mais íntimos amigos.

Qual o impacto da crítica de Machado sobre Eça?

Como já referimos a crítica de Machado foi sobretudo de caráter moralista, e bastante mal recebida no Brasil, até pelo excelente crítico Álavro Lins. Foi injusta e muito parcial, embora tivesse razão quanto ao considerar os prejuízos que uma escola literária pode eventualmente fazer a um grande autor, tão imaginativo e fantasista como Eça. Ele reconheceu esse inconveniente, mas salientou, ao mesmo tempo, que tal disciplina ajudou a controlar a sua fantasia.

Eça era realista e, quase sempre, essa visão era crítica à religião. Como ele resolveu essa contradição?

Pode dizer-se que Eça era um espírito religioso. Manteve sempre uma ternura muito especial pela mensagem evangélica de Cristo, social e humana. Foi, no entanto, extremamente crítico da deturpação que a instituição católica introduziu no cristianismo. Pode dizer-se que foi inteiramente anticlerical. O conto Suave Milagre, escrito numa prosa soberba, é sutilmente uma mensagem anticlerical.

Qual a singularidade de Eça de Queiroz como mestre da língua portuguesa?

A sua fama atingiu um cume inultrapassável com as comemorações de 2000. Eça está à altura de Fernando Pessoa e de Camões. É um mestre inigualável da língua, com uma mensagem clara, objetiva, extremamente atual, de crítica social e política e, nesse sentido, continua a ser o autor português mais citado. Peças como Alves & Cia (os brasileiros fizeram desta novela um filme inolvidável, com Patrícia Pilar na protagonista): o conto José Matias e A Cidade e as Serras, são valores intemporais que se leem e releem com inusitado prazer.

Na sua opinião, que obras de Eça ficaram mais datadas e que obras resistiram melhor à prova do tempo?

A obra literária de Eça é  muito variada e demonstra uma singularidade muito sinuosa, que é a de um escritor rebelde, que nunca se sujeita a disciplinas de escola. Essa singradura que passou por diversas fases, desorientou os comentadores e ainda hoje não está inteiramente compreendida. Prova-o à saciedade o que se tem dito de uma obra-prima intitulada A Relíquia. Eça começou por textos de uma descabelada fantasia, tornou-se realista depois da viagem ao Oriente, escreveu depois dois romances magistrais dentro dos princípios do realismo, fez de seguida uma viragem fantasista com O Mandarim e A Relíquia para retomar logo de seguida os princípios da observação objetiva e experimental com Os Maias, entrando na maturidade da última fase com A Cidade e as Serras, A Correspondência de Fradique Mendes e a Ilustre Casa de Ramires. Não vejo que qualquer dos gêneros literários que praticou tenha envelhecido. Harold Bloom, o grande crítico norte-americano disse que A Relíquia tinha hoje a mesma frescura e atualidade com que apareceu em 1878. Os Maias, um clássico intemporal, é e continua a ser a sua obra mais citada.

Ainda se lê Eça de Queiroz ou ele é autor soterrado na era da internet?

O segredo da sua permanência é a procura exaustiva da expressão literária simples e objetiva. Como ele escreveu: “Na arte, quando forte, fina e superior a simplicidade resulta sempre dum violento esforço, quase doloroso esforço. Não se coordena com clara elegância uma concepção, não se atinge uma expressão fácil, concisa e harmoniosa, sem longas tumultuárias lutas em que arquejam juntas Espírito e Vontade…” Eis o seu essencial segredo como criador. Da sua perenidade falam por si os Contos, talvez a sua mais notável expressão literária, A Relíquia e, é claro, Os Maias.

Conheça os títulos: A Ilustre Casa de RamiresA Relíquia, Os Maias, O Primo Basílio e Cidade e as Serras, obras escritas por Eça de Queiroz. E não deixe de conferir também o livro Eça de Queiroz: Uma Biografiaescrito por A. Campos Matos.

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