A paz com o Islã não será feita sem os muçulmanos moderados

Edson Passetti | Zero Hora | 10 de Janeiro de 2015

Para encontrar um caminho que permita a convivência entre as democracias ocidentais e os islamitas, será imprescindível contar com a participação dos pacifistas já integrados às sociedades europeias

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Foto: JEAN-PHILIPPE KSIAZEK/AFP / AFP

Edson Passetti

O islamismo assombra o ocidente do Estado laico e da sua respectiva tolerância com as várias religiões. A reviravolta produzida em 1979 pela chamada revolução iraniana contra o despotismo ocidental firmou o Estado em uma república islâmica teocrática. Este islamismo político precisa tanto de Estado quanto de terror transterritorial. Não está disponível a uma negociação possível. Não insinua uma guerra entre deuses, mas a uma guerra de homens para impor um deus exclusivo em qualquer lugar. Pode se erguer em um espaço tradicional, como no Irã, encontrar refúgios em outros Estados, como faz a Al-Qaeda, ou ser uma variante no interior de outro Estado, como no Iraque e na Síria.

Entre os islâmicos europeus pacifistas e integrados repousam as expectativas de condutas democráticas moderadas. Seus direitos são observados segundo as leis do Estado laico e a eles devem se ajustar com tolerância. Mesmo assim, por vezes ocorrem tensões com os pacifistas quando estes pretendem obter reconhecimento de suas condutas ajustadas aos preceitos religiosos. Estado e religião, mesmo depois do Iluminismo, permanecem intrinsecamente relacionados.

A Europa vive sob o crescimento do islamismo pacífico e do violento. Na Alemanha, no final de 2014, o movimento Pegida (sigla para “europeus patrióticos contra a islamização do ocidente”) comandou a mobilização fascista contra o islamismo e o direito de asilo político – já restrito pelo Parlamento conservador desde 1993. Incomoda na Alemanha a presença crescente de sírios fugidos do Estado Islâmico. Incomoda na França que os descendentes franceses do islamismo estejam combatendo ao lado do Estado Islâmico e que em breve poderão regressar e inaugurar práticas de ocupação territorial por atos terroristas. Há um temor acentuado do islamismo violento e ao mesmo tempo uma movimentação democrática em função de “apagar a luz do Pegida”. Este movimento de marcantes traços fascistas utiliza o lema “Somos o povo”, capturado do movimento dos alemães da antiga RDA do leste quando da unificação das Alemanhas, e objetiva “conservar a identidade alemã”.

Se em dezembro de 2014 o crescimento da mobilização xenófoba foi visível, em janeiro na França o ataque ao Charlie Hebdo introduziu outra reação de rua contra o terror islâmico. Em poucos dias a Europa deixou claro que as lutas de direita e esquerda em torno da questão islâmica se tornam cada vez mais intensas e difíceis. De um lado, a reação xenófoba, de outro lado, os atos de terror organizado islâmico. De um lado, a democracia a ser preservada e, de outro lado, a democracia que mais uma vez alimenta as forças reativas fascistas em nome da defesa da identidade nacional e/ou europeia.
Há uma violência intrínseca ao governo do Estado, à sua segurança e aos modos como trata o islamismo pacífico ou violento como perigo à segurança de cada europeu. Mais uma vez, democracia e teocracia se batem, desde os anos 1990, alastrando os chamados estados de violência cada vez mais comuns. Com isso, a tolerância e a moderação apregoadas tendem a escorrer pela vala da retórica. Cresce a olhos vistos o medo do islamismo como difusor de uma guerra santa, o que fortalece a direita. A esquerda, por sua vez, recorre aos preceitos legais e de direitos, mas se torna inofensiva diante do islamismo político e violento refratário à democracia. Ela precisa dos islamitas pacíficos e ajustados. Ela precisa recuperar a importância para seu próprio saber das inovações trazidas pelas invasões islâmicas desde o século 8 e se afastar do regime de segregações, expulsões e massacres cujo apogeu se deu no século 15. Mas a Europa, hoje unificada, pensa a si mesma a partir de si própria. E teme o islamismo.

O episódio de 7 de janeiro contra a sede do Charlie Hebdo atentou contra a liberdade de pensamento, mas também contra o anticlericalismo sempre inaceitável no mundo burguês e democrático. Jornais como o New York Daily News, o The Independent, a rede CNN e a Associated Press noticiaram o atentado, mas borraram as imagens iconoclastas do semanário francês com medo de represálias. Comentaristas se pronunciaram contra os excessos de Charlie Hebdo. Enfim, livre pensar supõe nesta democracia a moderação na crítica às religiões. Moderação esta que se ajusta aos preceitos da tolerância, mas cujo reverso é também o medo, e como tal entrega vitórias aos inimigos.

O semanário francês, coincidentemente, publicou antes do episódio o lançamento do livro de Michel HouellebecqSoumission, sobre um futuro governo islâmico na França (leia aqui a resenha do livro por Luis Augusto Fischer). Pelo sim ou pelo não, o atentado ocorreu no dia do lançamento do livro. Metralharam a polícia que fazia a segurança da sede do semanário, seus criadores e desapareceram diante do arsenal de homens armados e seus equipamentos de segurança. Foram saudados pelo Estado Islâmico. Diante do “Je suis Charlie” estampado pelos cidadãos livres pelas ruas francesas ou da hashtag #notinmyname, formada por religiosos islâmicos pacifistas contra o Estado Islâmico, ficam a rapidez e a agilidade do terror político em atentar contra o livre pensamento. O Charlie Hebdo também é perigoso para quem se veste de democrático tolerante.

Confira aqui todas as obras publicadas por Edson Passetti pela Ateliê.

 

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