Os espelhos de Rjukan

Alex Sens Fuziy

        foto_de_Kyrre_Lien

                       

Como mariposas enfeitiçadas por uma dança silenciosa, cujo ritmo é o próprio alvoroço de asas se debatendo contra um corpo iluminado, e cuja alegria acelera o voo e aquece a escuridão a ponto de fazê-la arder, os escandinavos reúnem-se ao sol e por ele orientam seus corações numa espécie de serenidade velada e compartilhada. Para eles, nada é tão essencial, tão agradável, tão revigorante quanto experimentar o calor do sol contra um rosto sorridente de olhos fechados, a respiração suave e o corpo inteiro entregue ao banho de vitamina D estimulando a produção de dopamina. Passeie por qualquer cidade norueguesa, sueca, dinamarquesa ou finlandesa durante um dia ensolarado, com temperaturas acima de 20 graus, às vezes 30, e você vai encontrar grupos de corpos claros e pouco vestidos espalhados pelo gramado de parques e praças como se algum grande evento estivesse acontecendo; um piquenique coletivo cheio de sorvetes mergulhados em chocolate derretido, copos plásticos com suco de maçã e caixinhas de cerejas suculentas; uma festa dedicada ao sol, esse deus do bom humor. Claramente, o mesmo sentimento é experimentado por todos que vivem mais ao norte do planeta, no entanto é na Escandinávia, onde a meteorologia é sempre um grande assunto (ao qual é de importância vital dar atenção), que ele extravasa, que transborda para além do habitual e se torna alvo de teses, constantes pesquisas científicas e piadas endêmicas.

Cravada entre duas montanhas, no vale de Vestfjord, região de Telemark, a pequena cidade norueguesa de Rjukan se oculta numa gélida sombra que dura seis meses. Devido à elevação do sol e à altura das montanhas, entre os meses de setembro e março, Rjukan se vira de costas para o sol, guarda seus três mil habitantes num abraço escuro e lança sobre eles a frieza de uma profunda noite azul. Ainda é possível ver um céu maltado, deixar escapar um sorriso tímido pela consciência maravilhada de que o sol continua por ali, calcando o azul, mas sem de fato tocar a praça central, a igreja e as antigas construções criadas no início do século XX para os operários da principal fábrica de fertilizantes de Sam Eyde — industrial, engenheiro e fundador da cidade. Hoje, eternizado na praça na forma de uma sóbria estátua vestindo um paletó sobre um colete, com a mão esquerda oculta no bolso das calças, Eyde chegou a construir um teleférico para que seus empregados desfrutassem de um intervalo ao sol sobre a montanha. Então o tempo passa e quase um século depois a cidade continua totalmente mergulhada nas sombras entre o outono e o inverno. Ou nem tão totalmente assim. No fim de 2013, pela primeira vez o sol de inverno brilhou na praça de 600 m2 de Rjukan. Poderia ser a estátua de Sam Eyde retirando daquele bolso esquerdo um pequeno sol particular, mas a história está longe de ser mágica, e envolve muito tempo, dinheiro e engenharia.

Levou doze anos para que a ideia do artista, e atual salva-vidas, Martin Andersen se manifestasse no topo de uma das montanhas ao custo de cinco milhões de coroas norueguesas, quase dois milhões de reais. Lá foram instalados (com a ajuda de um helicóptero) três espelhos de 17 metros quadrados cada, todos controlados por computador. Ainda no fim do outono, a ideia vingou: os helióstatos projetaram sobre a praça central uma difusa e amena luz solar. Entretanto, até o fim do último inverno foram registrados poucos dias de sol; a maioria deles foi banhada pela luz cinzenta e perolada de longas horas nubladas e frias, deixando a praça com o mesmo humor acromático dos que esperavam alguma mudança significativa. Se para alguns a invenção é e sempre foi um desperdício de dinheiro, para outros fez com que acendesse alguma alegria, alguma pequena e escorregadia esperança de dias menos escuros. Rjukan passou a ser mais visitada, teve seu nome estampado nos maiores jornais do mundo e a excentricidade nórdica (não só das barbas de Martin) oscilou entre a graça e o fascínio, o absurdo e o surreal, o possível e o improvável.

No caso de Kirkenes, cidade norueguesa mais ao nordeste do país e que faz fronteira com a Rússia, nunca será possível instalar helióstatos para lançar um pouco de luz no problema da escuridão — que, teoricamente, nunca foi um problema se pensarmos que um não existe sem o outro. Por dois meses, entre novembro e janeiro, Kirkenes mergulha na escuridão intátil de uma constante noite polar. São várias semanas com o céu oscilando entre o negro macilento que reveste os glaucomas do universo e um azul quase cego, um azul tomado pelo feitiço de ser uma quase-cor. Um azul em estado de silêncio bruto, de pontas afiadas por estrelas. Meses depois, quando o verão é o pináculo das estações, o sol se derrama para além da meia-noite e nada se oculta, nada se enegrece e o calor ameno é uma deliciosa fraude.

Aqui, onde vivo e escrevo, nos “alpes mineiros”, um sítio isolado e cavernoso na Serra da Mantiqueira, é inverno e o sol pinga atrás da montanha mais alta logo depois das três horas da tarde, quando a temperatura não passa dos quinze graus. Se eu fosse um escandinavo, estaria vestindo camiseta e bermuda, subindo a colina atrás da casa, caçando a liquidez do sol como um caçador de borboletas que só quer seu voo, não suas asas. É essa necessidade pela luz que nos move, que nos tira do lugar, que nos coloca em contato com o mundo. É esse amor pelo sol, mas também pelos dias escuros e nublados, como que passados em cera, mergulhados em alumínio líquido, esfregados em pedras da lua, que nos orienta, como mariposas atraídas pela abstrata surpresa dos contrastes, frios e quentes, claros e escuros.

As palavras todas - Alex

Alex Sens Fuziy nasceu em 1988 em Florianópolis (SC), vive em Minas Gerais e é escritor. Publicou Esdrúxulas, livro de contos de humor negro e realismo mágico, seguido pelo livro artesanal Trincada. Teve contos e poemas publicados em sete coletâneas e em revistas literárias virtuais, assim como resenhas de livros e críticas em sites de jornalismo cultural. Seu romance de estreia O Frágil Toque dos Mutilados venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2012.

 

3 Comentários


  1. Belíssima crônica!

    Muito prazer em conhecer, vou procurar um livro seu!
    Moro em São Bernardo, onde o sol persiste na rua e nas praças mas se ausenta com frequência no rosto e no interior das pessoas. Eu quase que esquecia do lema do Sol, ou de Maiakovsky!

    um abraço,
    Ciro

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