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Metamorfoses de James Joyce

Capa da Revista Cult: James Joyce

A cada releitura, sua obra suscita novas discussões e descobertas

Fabio Akcelrud Durão | Revista Cult | Fevereiro 2013

James Joyce não é um clássico – se você entender o termo em seu sentido usual, significando algo dotado de notável constância, possuidor de uma verdade eterna, atemporal e universal. Os textos de James Joyce não são clássicos, quando se imagina com isso que pertenceriam a uma galeria de grandes obras intocáveis e dignas da maior reverência, possuidoras cada uma de um sentido que seria importante preservar e difundir. A verdade é justo o oposto: Joyce só vale a pena ser lido e interpretado enquanto for capaz de suscitar questões e se mostrar como instrumento de descoberta: enquanto sua obra não for igual a si mesma. Este dossiê traz quatro exemplos disso.

No primeiro texto, Caetano Galindo aceitou o desafio de tentar responder à pergunta que fiz a ele: “afinal de contas, o que é o Finnegans Wake?” Ele salienta que o Wake é mais do que um livro, é um mito. Robert Brazeau confronta a crise na qual Ulysses nos coloca, e ainda que defenda um certo tipo de esquecimento – fazer “como se” não tivéssemos lido o romance – ele deixa entrever a postura oposta, o desconforto de quem insiste em usar Ulysses como medida para todas as narrativas. Omar Rodovalho, por sua vez, faz uma apreciação crítica da tradução de Galindo desse épico moderno, o acontecimento literário de 2012. Apontando para a genialidade do texto, não deixa de mencionar algumas insuficiências (inevitáveis!) nessa obra que enriquece a literatura brasileira. Finalmente, Jonathan Goldman sublinha o quanto a ficção de Joyce não apenas é permeada de elementos da cultura popular, mas o quanto esta apropriou-se dela. O artigo levanta um problema que não soluciona (nem poderia): se as referências ao modernista irlandês são uma mera estratégia de obtenção de prestígio, ou se abolem a divisão entre a alta e a baixa cultura.

Em todos os textos desse dossiê, o objetivo é fazer pensar sobre uma obra que pede exatamente isto: que façamos algo com ela.

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Finnegans Wake/ Finnícius Revém

Em seu romance, Joyce se apropria dos mecanismos dos sonhos para criar uma pan-mitologia

Caetano Galindo

Mais que um livro, é um mito.

O Finnegans Wake, mesmo entre os romances com reputação de dificuldade e, digamos, exotismo, parece ter reservado um lugar especial no imaginário literário. Poucos leitores terão enfrentado os desafios do Ulysses. Desses, uma parcela ainda menor juntou as forças e o tempo necessários para se dedicar ao romance a que Joyce precisou dedicar dezessete anos de trabalho árduo.

O Finnegans Wake não é bolinho.

Joyce declarou mais de uma vez que, se o Ulysses era o livro de um dia, era um livro do dia, seu último romance encamparia a noite e suas regras, o mundo da alógica dos sonhos, onde tudo pode ser sem parecer e parece ser sem poder. E essa tentativa ele levou, como sempre, às últimas consequências. Nada se parece mais com o mecanismo dos sonhos (ou do inconsciente) do que o Wake. Nada gera sonhos mais malucos num leitor do que um dia de contato com o Wake. Posso jurar.

Mas essa abordagem acarretou também a maior parte daquela complexidade tão miticamente famosa: como os sonhos, na verdade, o Finnegans Wake não só é difícil de entender como questiona a nossa mesma ideia de compreensão. Você pode viver o Wake, mas possivelmente nunca venha a entendê-lo, no sentido normal do termo.

Normalmente nós pensamos que um livro difícil pertence à categoria dos enigmas. Coisas que tendem a ceder ao esforço. Dificuldades que pedem mais e mais e mais trabalho. Mas complexidades que se desdobram, eventualmente.

Por mais que saibamos, e sabemos, que um grande texto literário jamais se há de esgotar, sabemos também (ou temos essa ilusão) que quanto mais estudarmos os textos mais difíceis da tradição literária, mais entenderemos deles, mais nos aproximaremos de uma sensação de compreensão, de familiaridade, de conhecimento.

Pois bem, o Finnegans Wake não é assim. Ponto.

Se é para manter a referência a tipos de problemas, este livro é da natureza dos mistérios. Você pode contemplá-lo, pode brincar com ele, mas vai ter que conviver com a noção de que a verdade final nunca vai ser revelada. Vai ter que fazer as pazes com a ideia de que esse jamais foi o objetivo do livro ou do autor. Ele está ali para complicar, para redobrar. Para infinitamente gerar novos sentidos, outras possibilidades para parecer mais oculto quanto mais você se esforce.

Ler o Finnegans Wake, portanto, é sempre aprender a ler de novo. Aprender a fornecer ao verbo “ler” algum novo sentido (usualmente pessoal e intransferível) que cubra também essa (singularíssima) experiência.

Porque a tal tentativa de questionar a lucidez diurna começa pela mesma linguagem, mais básico dos elementos. Joyce não era homem de deixar tarefas pela metade. Se era para montar um sonho, então, ele, como Freud, começou pela investigação dos primeiros tijolos. Aqui, as palavras não significam fatos, coisas, ideias do mundo. Elas não têm referente. Leitor nenhum, em momento algum, terá entendido, analisado, compreendido um trecho qualquer do Wake.

E o divertido é que Joyce encontrou a chave para essa sua linguagem em permanente devir no mais maltratado, mais vilipendiado e mais mal usado dos recursos literários: o trocadilho. O que ele percebeu foi que mesmo por trás do mais reles trocadilho de poeta bêbado há uma semente de caos e de potencialidade. Pois a palavra em trocadilho não reflete, ela refrata.

O trocadilho singelo diz uma coisa, insinuando uma segunda. O trocadilho sofisticado, shakespeariano, por exemplo, diz as duas ao mesmo tempo, irresolvivelmente. O trocadilho joyceano, especialmente graças ao emprego de mais de uma língua ao mesmo tempo (há quem já tenha contado mais de 80 idiomas no Wake), é só potencialidade. Ele não diz coisa alguma centralmente, mas abre portas para infindas leituras. E ao ensinar ao leitor esse método, ele como que o autoriza a sempre procurar leituras novas, suas, singulares.

É essa a máquina de geração de sentidos do Wake. Uma linguagem em que os signos não apontam para o mundo, para fora da linguagem, mas em que pedaços de signos, cacos, carregam fiapos de potencialidades semânticas que, somados, geram como que um feixe de possibilidades, sempre irredutível.

Um colidouscapo, nos seus próprios termos.

E é com esse instrumento que se vai contar a história de quem, afinal?

Bom, há coisas com que toda a crítica concorda, e que todo leitor atento acaba percebendo. Há, digamos, “personagens”, mas daqui a pouco você vai entender o por quê das aspas.

Eles seriam, centralmente, um sujeito que atende por diversos nomes que normalmente tem as iniciais HCE: sua esposa, que igualmente muda de denominação, mas que se resume em ALP, dois filhos gêmeos, Jerry e Kevin, ou Shem e Shaun, depende, que são meio que a antítese um do outro ou, quem sabe, apenas lados opostos do pai; e uma filha, Issy, Isolde, Isobel… Além de várias outras figuras menores, que parecem transitar pelo bar da família. Doze bêbados. Quatro velhos clientes. Uma faxineira, que muitas vezes se chama Kate, e um zelador… e por aí vai.

Mas esse seria apenas o esqueleto desse núcleo. Porque HCE, por exemplo, pode ser qualquer figura masculina de autoridade. Napoleão, digamos. Kate pode ser apenas a versão mais velha (e Issy a mais nova) de ALP. Issy pode se cindir em duas quando conversa com o espelho. Mais ainda, HCE é sempre montanha, Shaun é pedra, Shem é árvore, ALP é rio e Issy é nuvem/chuva (que, claro, vira rio). Aquele núcleo familiar se estilhaça em miríades de relações, engloba toda e qualquer família de relações e, ao mesmo tempo, se espraia sobre o mundo como natureza, como fundo vivo e ambiente.

Em torno deles, aqueles doze clientes, por exemplo, podem ser qualquer grupo de doze. Ou podem se identificar só por seu amor pelas palavras terminadas em –ação. Quaisquer quatro homens que andem em grupo (digamos, os envangelistas) serão aqueles velhos… e por aí vamos.

Os personagens do Wake tendem a se diluir uns nos outros, como que se reduzindo ao essencial: um homem, uma mulher, e o tempo: seus tempos.

Os personagens do Wake tendem também a se expandir e abarcar a humanidade toda. Em todos os seus tempos, Wellington, Jonathan Swift, Eva, papas, generais, Berkeley, o passado da Irlanda todo.

Os personagens do Wake podem ainda virar paisagem, tempo, cena, cenário. Por vezes é só mesmo o aparecimento de uma sequência de três palavras iniciadas por um h, um c e um e, que diz ao leitor que HCE não deve estar longe. É, na verdade, muito divertido ler certas cenas e progressivamente ir percebendo que determinada figura é Issy só porque se chama Nuvoletta e chora em chuva…

E o que acontece com essas pessoas?

Numa escala pessoal? Parece que houve um “crime”, que parece ser de natureza sexual/incestuosa. HCE será julgado, condenado, morto, enterrado e ressuscitará. Seu filho bonzinho, Shaun, tomará seu lugar. Fundindo-se com ele (é essa a ressurreição?)?

Os irmãos cobiçarão a irmã. A mãe se verá abandonada por todos ao envelhecer. É uma intriga familiar.

Mas tudo isso será encenado e reencenado sob os mais variados disfarces, fazendo com que a batalha de Waterloo, uma discussão filosófica, uma narrativa antropológica, um esquete cômico de rádio, uma antiga piada, uma canção (centenas de canções), um trecho da Bíblia, uma invocação a Alá, uma paródia literária, tudo se revista daqueles mesmos trajes, incorpore aqueles mesmos traços centrais e se invista deles, ganhando vida com aquelas pessoas e fazendo com que elas vivam em todos os tempos.

Porque eles, como se viu, não são só eles, e a escala pessoal pode ser a menos adequada.

O Finnegans Wake, famosamente, empresta do filósofo italiano, Giambattista Vico a ideia de que a história se repete em ciclos previsíveis, e assim faz do eterno-retorno seu mote principal. E bem como HCE pode ser todos os homens, sua queda e seu renascimento (como filho?) são o único tema da saga dos homens sobre a terra.

Sempre.

Todos,

They lived and laughed und loved end left.

Nasceram-serriram seamaram seeforam

Todos,

Sempre.

Ao se apropriar radicalmente dos mecanismos do sonho e ao extrapolá-los e fechá-los em nó cerrado (o livro se abre com a conclusão da frase suspensa na última página), Joyce não terá escrito uma narrativa comum. Ele quis escrever a única narrativa, elementar, nuclear, explosiva, de todos os homens e mulheres que nascem e vivem e morrem e vão. E ficam.

O sonho, aqui, é de toda a humanidade.

E o sonho da humanidade, Freud já sabia, se chama mitologia.

Uma pan-mitologia, nascida menos da compilação de narrativas orais do mundo todo, do que de um exaustivo trabalho que se assemelha curiosamente ao do estrutualismo de um Lévi-Strauss, por exemplo. Joyce, como ele, quis encontrar os mecanismos que embasam a urdidura dos mitos, quis encontrar os mitologemas centrais e os procedimentos usuais pelos quais a mitologia glosa o mundo, encerra em estória a história.

Mas não era era descritiva a sua empresa. Fáustico, ele quis sempre mais. Não apenas analisar essa mitopoese que pode ser tão centralmente humana, mas se apropriar de tudo que nela houvesse para finalmente criar um novo mito da humanidade, um mito de um homem, uma mulher, uma queda, um amor e uma vida eternos.

Mais que um livro. Mais.

*Aos leitores interessados em James Joyce, a Revista Cult deste mês (#176) publicou outras matérias sobre o autor, inclusive a respeito de sua influência na cultura popular

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