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O Maior Privilégio

Os Privilégios, de Stendhal

Renato Tardivo

Os Privilégios, de Stendhal, autor do célebre romance O Vermelho e o Negro, é um livro importante e curioso, uma vez que, como aponta a tradutora Jerusa Pires Ferreira no prefácio, “nos espantamos em razão das singularidades encontradas”. Mas de que se trata?

O escritor realista adquire, em Os Privilégios, um sopro romântico. Os textos foram escritos dois anos antes de sua morte – e publicados vinte anos depois. Estaria Stendhal reivindicando o privilégio da vida? Talvez.

O livro, cuidadosamente editado, divide-se em 23 artigos; fragmentos narrados em terceira pessoa, tendo “o privilegiado” como personagem principal. Tome-se um exemplo (Artigo 10):

“Na caça, oito vezes por ano, uma pequena bandeira indicará ao privilegiado, com uma légua de distância, a caça que vai existir e sua posição exata.

Um segundo antes que a caça parta, a pequena bandeira se iluminará; bem entendido que essa bandeira será invisível a toda outra pessoa que não seja o privilegiado.”

Conforme se nota, o privilegiado (e só ele) é contemplado com uma série de concessões (praticamente) impossíveis. É esta a tônica dos demais fragmentos, como o 14º, de teor metalinguístico:

“Se o privilegiado quisesse contar ou revelasse um dos artigos de seu privilégio, sua boca não poderia formar nenhum som e ele teria dor de dentes durante vinte e quatro horas.”

Com efeito, há que se ter o cuidado, sempre, para não tomar a obra de arte pela vida do autor e vice-versa. Pensemos, pois, em outros livros de Stendhal – além do já mencionado O Vermelho e o Negro, A Cartuxa de Parma, também referidos no prefácio da presente edição. Se o tom desses Privilégios destoa do realismo dos romances mais conhecidos, talvez, por outro lado, as concessões-limite presentes nos artigos tragam pelo avesso – por meio da ironia, do invisível ou mesmo do impensado – o lado realista desse escritor genial.

Por fim, em tempos de mensagens curtas e dos mais variados registros instantâneos, a leitura de Os Privilégios (livro do século XIX) torna-se ainda mais relevante, à medida que acrescenta à reflexão acerca dos rumos que estamos dando ao nosso maior privilégio – a linguagem.

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Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Renato Tardivo é mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte pela USP e escritor. Atua na interface entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. Foi professor universitário e é autor dos livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras).

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