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No meio do caminho tinha uma pedra polonesa

Fonte: Publishnews

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Roney Cytrynowicz

Em meio às celebrações pelo início da reedição da obra de Carlos Drummond de Andrade, pela editora Companhia das Letras, vale lembrar o interessante e curioso Uma pedra no meio do caminho. Biografia de um poema, lançado há pouco pelo Instituto Moreira Salles, reedição de um livro de mesmo nome lançado originalmente em 1967.

O volume original apresentava uma coleção, reunida pelo próprio Drummond, de críticas e comentários sobre seu poema “No meio do caminho”, publicado na Revista de Antropofagia em 1928 e depois incluído em Alguma poesia, de 1930, início de sua trajetória literária. O interessante e divertido é que boa parte das críticas selecionadas pelo próprio poeta são cruelmente negativas, incluindo as escritas por ferrenhos parnasianos, que debochavam e destratavam poema, poeta e Modernismo, tratados como pífios e ridículos.

“No meio do caminho”, também pela violência da crítica, se tornou, com o passar dos anos, uma espécie de poema-manifesto do Modernismo. O livro do Instituto Moreira Salles possui uma segunda parte, organizada por Eucanaã Ferraz, que atualiza a edição de 1967 e inclui páginas posteriores de crítica literária, como a preciosa análise de Davi Arrigucci Jr. “A pedra e a reflexão”, de 2002.

“No meio do caminho tinha uma pedra” se tornou uma frase-pensamento com vida autônoma e integrada às expressões populares do país. Ler hoje a seleção de críticas ao poema, a partir dos anos 1930, é – além de divertido, às vezes hilariante – refazer o percurso do Modernismo e dos debates literários ao longo dos anos 1920 a 1950. Difícil recuperar a importância do debate desencadeado, por exemplo, pela utilização de “tinha” ao invés de “havia”, estabelecendo outro código linguístico para a arte e a poesia.

Eu estava com o pensamento nas pedras quando li os belíssimos Poemas, da polonesa Wislawa Szymborska (Companhia das Letras, tradução do polonês por Regina Przybycien), prêmio Nobel de Literatura e falecida há pouco, e Duplo canto e outros poemas, do franco-chinês François Cheng (Ateliê, tradução de Bruno Palma). Embalado pela pedra drummondiana, fiquei encantado com os poemas de ambos dedicados às pedras – sem nenhuma intenção de reduzir a pedra poética do poeta de Itabira ao seu aspecto geológico (não que isso desmereça uma pedra, ao contrário; basta visitar o Museu de Geociências da USP para conhecer a veia poética de minerais, rochas, gemas, meteoritos, fósseis e outros).

No singular e intrigante “Conversa com a pedra”, Szymborska dialoga com uma pedra. Sua poesia, bem humorada e irônica, é de uma complexidade tão intrigante e engenhosa que, ao final, parece simples e cotidiana. Reproduzo duas estrofes:

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“Bato à porta da pedra.

– Sou eu, me deixa entrar.

Venho por curiosidade pura.

A Vida é minha ocasião única.

Pretendo percorrer teu palácio

e depois visitar ainda a folha e a gota d´água.

Pouco tempo tenho para tudo isso.

Minha mortalidade devia te comover.

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– Sou de pedra – diz a pedra –

E forçosamente devo manter a seriedade

Vai embora

Não tenho os músculos do riso.”

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De François Cheng, reproduzo um trecho de “Um Dia, as Pedras”, primeira parte de Duplo canto:

“Do pé à pedra

Um passo apenas

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Mas quantos abismos a transpor

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Somos submissos ao tempo

Ela, imóvel

no coração do tempo

Somos limitados aos ditos

Ela, imutável

no coração do dizer

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Ela, informe

capaz de todas as formas

Impassível

Portadora das dores do mundo

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Rumorejante de musgos, de grilos

de brumas transmudadas em nuvens

Ela é via de transfiguração

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Do pé à pedra

um passo apenas

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Para a paciência

Para a presença”

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Entre tropeços, permanências, enigmas e eternidades, eu sempre gostei de pedras – pedras no sentido leigo e genérico –, desde aquelas que a gente chuta pelo caminho, dos oito aos oitenta anos, e eventualmente entabula uma tabelinha, até, por exemplo, aquela pedra gigantesca do Núcleo das Águas Claras do Parque da Serra da Cantareira, à qual se chega por meio de uma boa caminhada e da qual se tem uma deslumbrante vista de São Paulo. Sentado naquela imensa pedra (que existe desde quando?), a infinita metrópole se torna um pequeno mundo capturável pelo olhar.

Aos que gostam de poesia e pedra, sugiro – além de ler esses poemas e livros – que encontrem muitas pedras pelo caminho, façam o passeio da pedra da Serra da Cantareira e visitem o Museu de Geociências na Cidade Universitária, em São Paulo, lugares onde as pedras ganham vidas inesperadas, com suas infinitas faces, cores, brilhos, ranhuras e texturas. A combinação de pedra e poesia pode iluminar sempre os bons e maus tropeços nos caminhos da vida.

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