Conto: O dia em que matei o caçador

Afinador de Passarinhos - Gil Perini

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Gil Perini

O Afinador de Passarinhos

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– A Duquesa ficou louca!

Assim, sem um alô nem nada, o Codé me recebeu na porta da casa, assustado. Não teve abraço, gritaria, nada dessas comemorações barulhentas que a italianada costuma fazer nos reencontros.

Eu tinha acabado de chegar. Desembarquei da Mogiana, deixei a mala na chácara da beira da linha e desci. A velha Santa Rita lá, dentro do buraco, esparramada pelas encostas suaves que margeiam os dois córregos, semelhava cadáver insepulto abandonado em cova rasa. Casario decadente, torres de igrejas, mangueiras nos quintais.

– Morreu?

– Ainda não. Avança em todo mundo. Dois dias sem comer nem beber. Alguém tem de matar ela; ninguém tem coragem. Vai ocê, Goiano.

Fui empurrado portão adentro e chegamos à varanda. Estavam todos lá, o bando de adolescentes ao redor da mesa, triturando uma baciada de laranjas pannazias. O Vitório me entregou a doze.

– Está carregada. Vai, vai.

Rodeei o cômodo da lavanderia e desci. Atrás do monte de lenha, amarrada, encontrei Duquesa, a pointer miúda que nos ensinara a caçar codornas. A mestra, que não ficava muito perto para que o caçador não espantasse a caça, nem tão longe que não a pudéssemos controlar, e que amarrava com elegância, levantava com vigor e trazia à mão, nas raras vezes em que acertávamos o tiro, rosnou, latiu e esticou a corda que a prendia. Em nome da caridade, eu deveria sacrificá-la.

Quem, um dia, já caçou com um perdigueiro, sabe o que vou dizer: ela me olhou de frente e ganiu. Parece que, por um instante, entre lucidez e loucura, ao ver a espingarda e o homem, Duquesa achou que iríamos caçar. Abanou o rabo, fez festas, ganiu novamente e avançou. Vi Duquesa trilhando codornas imaginárias; lembrei Baleia e suas preás gordas no céu.

Levantei a arma, fiz pontaria. A imagem de Duquesa diluiu-se à minha frente como se refletida em poça d’água soprada em manhã de vento. Fechei os olhos, senti um gosto de sal, apertei o gatilho.

Não me lembro do fragor do tiro, mas não consigo esquecer o silêncio que veio depois, só quebrado pelo empregado do armazém, que saiu arrastando alguma coisa pelo quintal coberto de folhas.

Retornei à varanda e eles ainda estavam lá. Ninguém disse palavra; viraram-me as costas. Mãos nos bolsos, saí calado como cheguei. Na rua, nem uma lata pra chutar.

Depois, reclamei da frieza da turma e o Codé disse que eles não queriam que eu os visse chorar; não ficava bem para caçadores. Foi bom. Eu também não queria que vissem como eu estava.

Até hoje penso que não foi com o tiro: foi com aquele silêncio que se seguiu que matei o caçador. O que estava dentro de mim e que eu, na verdade, não queria ser.

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Prêmios do livro: Melhor capa no Creativity Awards e no How Design Awards

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