Interferências na Escrita – Parte 1

Interferências na Escrita - Alex Sens

Como se aguardassem um sinal sutil, um comando que aquecesse a força motriz da criatividade, as mãos flutuam indecisas sobre o teclado. Entre o mergulho dos dedos e a transformação do branco em linguagem ao menor movimento das falanges, o mundo respira, o próprio silêncio é silenciado.

Uma pomba no galho de um eucalipto deixa escapar um lamento, lembrando a nota de uma flauta doce atravessando as folhas como uma flecha de som. Outro lamento se segue, e mais outro, a sinfonia da pomba é o primeiro corte no silêncio. Um gavião faz companhia, dessa vez no telhado, inclina o pescoço rajado e com um leve frêmito começa seu estridente aviso de fome. Outro corte no silêncio. As nuvens incham como grossos novelos de água escura, uma grande sombra é formada sobre a floresta e os bugios pulam na escuridão das árvores, gargalhando e se preparando para a chuva iminente. Um trovão estoura e rola, como se Deus, durante o boliche, alargasse o tempo para sua bola de poliuretano deslizar sobre o céu.

O processador do computador recupera o fôlego. Os dedos ainda flutuam inquietos.

Da sala, um pigarro corta outra fatia de silêncio, termina como um gemido cansado, mas lembra um motor tentando funcionar através da melhor entonação de voz. Da televisão, a mulher de voz rouca (talvez ela precise de um pigarro) anuncia que o número de desaparecidos no naufrágio do navio Costa Concordia pode passar de trinta, então a matéria começa com o som de ondas quebrando nas rochas que cingem a Ilha de Giglio. Da cozinha, ainda que não se possa ouvir com nitidez, uma faca ensaboada cai na bacia de inox, o som de um acidente; outra cai no chão, “visita masculina”, diria a avó. Ao mesmo tempo, a chuva se rompe dos novelos d’água e cai no telhado como bicos de corvos quebrando peças de cerâmica. Do quarto, um aspirador de pó é ligado, outro lamento dolorido, contínuo, quase abafado pela tempestade.

O mais suave som – como duas camadas de vidro sobrepostas e um jato de luz incidindo sobre elas; quanto mais camadas, mais sombra, mais penumbra, mais se torna turva a criação. Assim como no sono, ou no início da insônia, os ruídos são novas camadas de vidro que vão escurecendo a luz do desejo – do desejo de dormir, no caso da insônia produzida pela falta de silêncio, ou do desejo de escrever, no caso do pensamento interferido pelo mundo externo.

Um pequeno grupo de escritores pode preferir escrever ouvindo música clássica, outro o som do vento ou da chuva amassando as folhas secas de uma árvore; um terceiro pode dar preferência àquela escrita cuja única interferência sonora é a das teclas estourando miúdas na velocidade dos dedos – faço parte deste grupo, talvez o maior deles, assim como do anterior. Ah, nada mais prazeroso do que ouvir a criatividade em ebulição, correndo pelo teclado de um computador ou de uma Remington! Mas desde que estes sons sejam produzidos por você, não pelo vizinho escritor, pois na sua mente de ideias incríveis obliteradas e já cansada do tec-tec-tec, ele parece mais inteligente, mais preparado para o combate com a literatura, um desejo maldoso de mostrar vantagem. O inferno são os outros, mas os prazeres secretos somos nós.

Um novo trovão rola no céu, seguido por um estouro que derruba dez palavras. Strike de Deus.

Coluna Autor sobre Autor - Alex Sens

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