Generosidade e Gratidão em Arte, Dor

Arte, Dor - João A. Frayze-PereiraO livro Arte, Dor – Inquietudes entre Estética e Psicanálise (Ateliê Editorial), de João A. Frayze-Pereira, foi recentemente lançado em segunda edição – revista e ampliada (a primeira edição é de 2006).

João Frayze é psicanalista, livre-docente pela USP e crítico de arte. Arte, dor reúne uma série de trabalhos que fazem do autor um dos nomes mais importantes – talvez o maior deles – em Psicologia da Arte no Brasil.

Os capítulos, embora independentes entre si, compõem uma tese; tese que se desenvolve pelo negativo, isto é, pela incansável desconstrução da realidade ingênua, de conceitos cristalizados, em suma, por aquilo que o fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty, um dos autores mais apreciados por Frayze-Pereira, denominava “questionamento da fé-perceptiva”. Não por acaso, o capítulo final intitula-se “Inconclusão: psicanálise e crítica de arte” (grifo meu).

Mas de que trata o livro?

“Situada entre a Estética e a História da Arte”, a Psicologia da Arte “requer a presença da psicanálise”, uma vez que “a abertura do psicólogo social para a arte dependerá principalmente de sua disposição, como espectador da arte, para introduzir-se nesse campo abissal […] correndo o risco da vertigem e o da perda de pontos fixos”. Assim, o intérprete, “ao se abrir para o campo das obras”, terá de se haver com “questões de ordem transferencial” e, “consequentemente, comprometer-se”. Daí, segundo Frayze-Pereira, a psicanálise se impor como uma perspectiva necessária dentro desse “jogo interdisciplinar”.

Portanto, como já diz o próprio subtítulo, o livro irá abordar “inquietudes entre Estética e Psicanálise”. Cabe esclarecer, contudo, que muitas são as possibilidades de se inclinar a essa relação. A postura assumida por Frayze-Pereira, tal qual explicitada pelo próprio na Introdução do livro, é a seguinte: “diante do novo, diante de uma obra em processo ou em exposição, isto é, sempre em vias de se fazer e um enigma a nos interrogar, não são a ‘escuta clandestina’ e o ‘olhar oblíquo’ os meios privilegiados para referenciar nas margens ou no bastidor, nas lacunas ou no silêncio, a ‘potência do irrepresentável’? (os termos entre aspas [incluídos por Frayze-Pereira] são de Murielle Gagnebin)”. Continua o autor: “é o não-dito (ou o não-visível) que é capaz de revelar criativamente uma história ou uma sucessão de acontecimentos no decorrer da análise de uma obra. E nesse processo de instauração de uma leitura é o ponto de vista do espectador que paulatinamente se infiltra no campo da criação, uma vez que a obra também se faz tributária do olhar que a interroga”.

Para trabalhar com essa implicação entre psicanálise e arte, o autor recorre inicialmente ao já citado Merleau-Ponty e a Michel Foucault. É a partir – e por meio – desses dois autores que Frayze-Pereira nos apresenta uma leitura densa e crítica da psicanálise, que é atravessada o tempo todo pelo paradoxo implicado na relação artedor, inquietação primeira e última deste belo trabalho.

Além da Introdução e da Inconclusão, o livro é divido nas seções Problemáticas, Fundamentos e Análises. Ainda, a publicação conta com o prefácio de Jacques Leenhardt, o prefácio à segunda edição de Camila Salles Gonçalves – ótima porta de entrada às reflexões que se seguem – e, ao final, há o posfácio de Maria Helena Souza Patto, que também assina a orelha do livro, texto que mapeia historicamente a trajetória de João Frayze, dando luz à poesia inerente ao percurso trilhado pelo autor.

Nas Problemáticas, Frayze-Pereira delimita o campo a partir do qual ele irá abordar a complexa relação entre arte e psicanálise. O autor trabalha conceitos-chave –psicanálise implicada, experiência estética, entre outros – sempre comprometido com a História da Arte e com a entrada desta no campo das investigações psicológicas (e vice-versa): “A aproximação entre a Arte e a Psicologia não é um movimento recente. Muito anterior ao próprio advento da Psicologia como disciplina científica, na verdade, foi a própria Estética que se abriu à Psicologia que estava por vir”.

A seção Fundamentos reúne reflexões teóricas – problemas de pesquisa – que decorrem das problemáticas desenvolvidas anteriormente. Cabe destacar, aqui, o capítulo que fecha os Fundamentos: “O corpo como obra de arte: a unidade do múltiplo”. A temática da correspondência das artes e da unidade dos sentidos, do meu ponto de vista, é das mais relevantes nas discussões e análises empreendidas por Frayze-Pereira, presente tanto nas poéticas mais espinhentas – a análise sobre Van Gogh ou sobre a banalização do mal na arte contemporânea, por exemplo – quanto na “generosidade e gratidão” da artista Amélia Toledo, ensaio que encerra a seção Análises.

Vale dizer, foram incluídas duas análises na segunda edição do livro: “Arte e inveja na Era do Vazio”, questão extremamente atual na clínica psicanalítica e no ambiente das artes, e “Arte-crítica: Louise Bourgeois”, artista que mantém estreito vínculo com a psicanálise mas que, nem por isso, revela o enigma contido em suas produções, mas, em direção oposta, “Bourgeois figura entre tais artistas que assimilam a função da crítica em suas propostas plásticas”. Ao “subverter o instituído”, Louise Bourgeois, segundo João Frayze, antecipa historicamente “certa tendência da psicanálise contemporânea para a qual o fazer psicanalítico não é uma operação de descoberta de conteúdos psíquicos ocultos sob a conduta manifesta dos indivíduos, mas o processo interpretativo que Fabio Herrmann define como ruptura de campo. Trata-se de um processo, aparentado à arte, que interroga a lógica que inconscientemente fixa os modos do indivíduo ser no mundo, desconstruindo aquilo que se apresenta banalizado e consolidado na sua existência”.

Quanto às inconclusões, cada qual que extraia as suas. Arte, dor – inquietudes entre estética e psicanálise é um compêndio sobre esse tema, certamente útil a artistas e psicanalistas, mas também a leitores interessados. É que, em que se pese a densidade dos ensaios, a linguagem é fluida, límpida, e evita, com sucesso, certos academicismos que mais se prestam a afastar o leitor do texto. Arte, dor, ao contrário, captura o leitor e, sendo suficientemente bom, permite que ele se perca em suas (entre)linhas, para – quem sabe? – poder crescer em meio ao desassossego do doloroso caminho rumo à generosidade e gratidão.

Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Escritor e psicanalista. Mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte (IP-USP); autor do livro de contos Do avesso (Com-Arte) e de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp).

3 Comentários


  1. Eu tinha dito pra vc no FB nunca parar de falar…..
    Agora to pedindo pra vc NUNCA parar de escrever…
    Bom… fale e escreva, ou, pense, sinta, (sinta ou pense), mas, fale e escreva….sempre “poetizando”!
    O mundo ta cheio de coisas ruins demais!!!
    A gente precisa dessas coisas boas pra seguir em frente!
    Abraços
    Darly

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