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Coração, Cabeça e Estômago: humor e crítica em um texto clássico

A Ateliê Editorial, neste momento de isolamento social, convidou alguns leitores para compartilharem suas impressões sobre alguns de seus livros prediletos. Com isso, pretendemos fortalecer uma comunidade de pessoas apaixonadas por livros, que sabem que eles podem ser uma excelente companhia em momentos como este. Este texto é de Camila Justo*, que escreve sobre Coração, Cabeça e Estômago, escrito por Camilo Castelo Branco em 1862 . Agradecemos a colaboração de Camila e esperamos que todos apreciem a leitura!

A leitura da novela satírica publicada em 1862, Coração, Cabeça e Estômago poderá nos ajudar a conhecer  Camilo Castelo Branco, o autor, e outros aspectos de sua obra.  Em relação à estrutura: apresenta um preâmbulo, sob forma de diálogo entre os amigos Faustino Xavier Novaes e o editor (provavelmente o próprio Camilo Castelo Branco) em torno de um amigo em comum, morto há seis meses. O editor em questão recebe a incumbência de organizar, revisar e publicar o livro de memórias do falecido Silvestre da Silva; e três partes , a saber: 

A primeira é intitulada CORAÇÃO e é a mais longa. Ela abarca boa parte do livro e vai de 1844 a 1854. Nela, Silvestre da Silva, apresenta-se como um saloio ingênuo, sonhador e cheio de esperança, que deixa sua pequena aldeia em Soutelo e migra para Lisboa, onde”inicia seu noviciado amoroso”. Nesse período, suas atitudes e decisões são norteadas pelos sentimentos e excessos de sua imaginação.

Ele ama (ou melhor, tenta amar, sete mulheres), mas sempre de forma instantânea (apaixona-se à primeira vista) e leviana, fortemente influenciado pelos romances e poesia românticos que ávida e irrefletidamente consome.

Silvestre tenta reproduzir a todo custo o estilo de vida e padrões de comportamento adotados por seus heróis e poetas românticos preferidos,  o que acaba desencadeando uma série de situações ridículas e jocosas e, ao mesmo tempo, dignas de reflexão. 

As mulheres pelas quais Silvestre se apaixona apresentam traços de caráter e personalidade semelhantes entre si, reproduzindo sempre os mesmos padrões de escolha de objeto amoroso: todas elas são frívolas, vaidosas, cínicas e interesseiras, e não hesitam em trocá-lo por homens endinheirados na primeira oportunidade.

Depois de sete decepções amorosas consecutivas, Silvestre ainda conhece outras duas mulheres: Paula, “a mulher que o mundo respeita” (é cínica, hipócrita e calculista, trai o conde com o qual se casa por conveniência), mas como é rica, a alta sociedade lisboeta faz vistas grossas ao caso extraconjugal que mantém com o mestre-escola e mesmo sendo adúltera é adorada em seu meio social; e a última é Marcolina, “a mulher que o mundo despreza”, foi aliciada e vendida pela mãe aos 14 anos de idade a um barão. 

Com a morte deste, Marcolina, casa-se com Augusto, um antigo amor, que após o casamento revela-se um homem violento, perdulário, libertino e jogador e dilapida o dinheiro obtido com venda das joias que a esposa recebera de presente. Desesperada e tendo de sustentar suas irmãs, vê-se obrigada a se prostituir. Marcolina e Silvestre se conhecem no Cais do Sodré, justamente no momento em que ela tencionava dar cabo de sua própria vida, pois havia contraído tuberculose e se sentia abandonada pela família.

Ao ouvir sua triste história, Silvestre se compadece da moça e a leva para sua aldeia natal em Soutelo, em busca de ares mais puros e benfazejos à sua debilitada saúde.

No leito de morte, Marcolina declara seu amor por Silvestre, que, ao mesmo tempo, se dá conta de também a amava, pois segundo ele, Marcolina era a mais verdadeira, pura, sincera e santa que “as mulheres que o mundo respeita”.

A segunda parte denomina-se CABEÇA (sede da inteligência, da razão, do cálculo, da consciência, do planejamento e da premeditação) e estende-se por cinco anos (1855-1860), em que Silvestre da Silva, entediado com a monotonia, a tristeza e fealdade de sua aldeia, muda-se para a cidade do Porto, onde passa a trabalhar como jornalista e se interessa pela política local.  

Faz duras críticas aos romances românticos franceses, questionando os padrões de beleza de suas heroínas, sempre pálidas, magras e frágeis a que as jovens procuravam imitar à custa de forçados jejuns e noites mal dormidas e que mulher portuense do passado tinha aspecto bonito, vistoso, saudável, era bem fornida de carne, tinha as faces coradas e mais disposição de ânimo. Silvestre acaba se envolvendo em uma série de confusões com figuras ilustres da sociedade portuense, denuncia sua hipocrisia, pondo a nu seus aspectos ridículos, degradantes e comezinhos, o que lhe trará sérios problemas financeiros e profissionais, e este será o motivo que o fará regressar definitivamente à aldeia onde nasceu.

Ilustração do livro Coração, Cabeça e Estômago, feita por Gustavo Piqueira

A terceira, e última parte denomina-se ESTÔMAGO (órgão que representa o instinto de sobrevivência, nossas necessidades básicas, instintivas tais como comer, beber, procriar, dormir). Nesse período,  que vai de 1860-1861, o protagonista procura uma vida bucólica, serena e isenta de preocupações.   Silvestre nos conta as razões por que se casou com Tomásia e como isto se deu.

Pode -se dizer que o título da novela é uma espécie de metáfora da trajetória de seu protagonista: no início é um saloio ingênuo, romântico, atrapalhado, cheio de esperanças, mas à medida que se decepciona com as mulheres com quem tenta se relacionar e com a sociedade em que se insere, deixa-se corromper pelo meio, tornando-se amargurado, cético, acomoda-se se ao status quo, tanto é verdade que morre de caquexia, empanzinado de tanto comer.

Por fim,  outro aspecto digno de nota é o modo como Camilo Castelo Branco satiriza o Romantismo, movimento estético e filosófico, a que num primeiro momento parece estar associado. Isto se evidencia pela maneira concisa, desidealizada, sem aqueles floreios retóricos, tão caros aos românticos, como  Silvestre da Silva, o narrador da novela nos descreve a personagem Tomásia.

Segundo ele, Tomásia é uma jovem rústica, “escura de inteligência”, não sabia ler nem escrever e era desprovida de vaidade. Porém, ao ler a novela, tem se a impressão de que ela era uma mulher sincera, de coração puro, inocente, sensata, trabalhadora, temente a Deus, forte tanto física quanto moralmente e o mais admirável, dotada de um senso prático incomum às mulheres do século XIX, sobretudo, se a compararmos àquelas que Silvestre conheceu nas cidades de Lisboa e Porto . 

Desta forma , cabe lembrar que no mesmo ano de publicação desta obra veio a lume a novela passional  Amor de Perdição, considerada tanto pelos críticos e historiadores literários quanto pelo público, a obra-prima de Camilo Castelo Branco, mas  a leitura de Coração, Cabeça e Estômago deixa claro que sua produção literária  é mais vasta e diversificada e não se restringe às histórias fatalistas, de amores impossíveis, infelizes, repleto de lances trágicos ou melodramáticos, como muitos manuais de literatura do Ensino Médio querem nos fazer crer.

*Graduada em Letras Português/Espanhol pela UNIVAP (Universidade do Vale do Paraíba 2003), especializada em Literatura pela UNITAU (Universidade de Taubaté 2008/2009).

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