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“A Relíquia”, de Eça de Queirós: humor e ironia em um clássico realista

Por Renata de Albuquerque*

Um romance realista cheio de ironia, humor e com um toque de cinismo. Assim é A Relíquia, romance de Eça de Queirós, publicado em 1887 em Portugal. O livro é narrado por Teodorico Raposo (Raposão), órfão de pai e mãe que, ainda criança, vai morar com sua tia, Dona Maria do Patrocínio (Titi), uma senhora beata, avara e casta. É ela quem controla a fortuna que o sobrinho herdará, no futuro.

As características da tia do narrador não são colocadas por acaso pelo autor. Eça de Queirós foi integrante da chamada Geração de 70 de Portugal, um grupo de artistas e intelectuais que desejava a renovação da  vida política e cultural portuguesa, que consideravam decadente. A obra Causas da decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, de Antero de Quental, componente do grupo, propõe que são três os elementos que levam ao atraso científico e industrial e à decadência moral, econômica e social: o catolicismo, a monarquia absolutista e as conquistas ultramarinas. Em A Relíquia, Eça de Queirós lança mão de uma personagem beata para criticar a igreja católica e a sociedade portuguesa de então.

Enredo

A Relíquia narra as memórias de Teodorico Raposo, órfão cuja mãe morreu no dia seguinte ao parto (um sábado de aleluia) e que, por parte de pai, era neto de padre.  Tudo é contado com um forte tom de ironia. Por isso, o que está posto no romance deve ser lido com uma certa desconfiança do leitor. Graças a este recurso, a obra é uma leitura que agrada e diverte o leitor, pelo humor ácido e pelo cinismo. Teodorico narra as desventuras de viver com a tia e também suas aventuras em uma peregrinação à Terra Santa – viagem que Raposo realiza porque a tia não concordara em enviá-lo a Paris, cidade que Dona Maria do Patrocínio considerava um berço de vício e perdição. Titi pede ao sobrinho que lhe traga uma relíquia de Jerusalém.    

Na Terra Santa, Teodorico passa por uma experiência fantástica. Ele assiste pessoalmente a todo o sofrimento de Jesus Cristo e descobre que, em vez de ressuscitar, ele morreu de fato. Por causa deste episódio, muitos críticos acreditam que o romance fuja um pouco do realismo. Mas, no decorrer da trama, o realismo está fortemente presente.

Obviamente, entretanto, Teodorico não deixa de viver aventuras, ainda que em Jerusalém. Lá ele conhece Miss Mary, com quem tem um romance. Quando se separam, ela lhe dá como lembrança sua camisola, embrulhada em um pacote.

Para honrar a promessa que fez à tia – de trazer-lhe uma relíquia da Terra Santa – Teodorico trança uma falsa coroa de espinhos, que embrulha, de presente para Dona Maria do Patrocínio.

O narrador encontra, em seu caminho, uma mendiga e dá a ela a camisola de Miss Mary. Mas, em vez disso, confunde os pacotes e entrega-lhe a falsa coroa de espinhos. Ao voltar ao Brasil, entrega a camisola à tia que, então, deserda-o. Teodorico lamenta não ter convencido a tia de que aquela seria a camisola de Maria Madalena. Então, começa a vender “relíquias” de Jerusalém, que ele mesmo fabrica, mas o negócio declina com o tempo.

No final, Teodorico Raposo casa-se, torna-se pai e recebe a comenda de Cristo, sem, mesmo assim, deixar de pensar que poderia ter feito fortuna se tivesse dito uma mentira convincente  à tia beata.

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*Jornalista, Mestre em Literatura Brasileira pela FFLCH/USP, autora da Dissertação Senhoras de Si: o Querer e o Poder de Personagens Femininas nos Primeiros Contos de Machado de Assis.

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