“Moleque de fábrica”: memória de um trabalhador

Por Carina Pedro *

O livro “Moleque de Fábrica – Uma Arqueologia da Memória Social” do sociólogo e professor José de Souza Martins é um mergulho profundo nas memórias do autor, da sua infância à maturidade, das difíceis relações familiares e profissionais estabelecidas entre o campo e a cidade, que ajudaram a formar o homem adulto e acadêmico, crítico de sua própria trajetória. São memórias com as quais muitos brasileiros vão se identificar, seja pela imigração de seus antepassados, pela infância no interior e na cidade (uma das do ABC paulista), em meados dos anos cinquenta, quando ser operário de fábrica era o destino certo da maioria dos trabalhadores. A obra é composta por catorze capítulos, um prólogo e uma conclusão, que nos fazem refletir sobre o Brasil de José e de outros tantos brasileiros.

No primeiro capítulo “Estranho Regresso”, Martins narra sua viagem a Portugal nos anos 70 e a descoberta da história de origem de seu pai, nascido em Santiago de Figueiró. Em pouco tempo, informações surpreendentes sobre sua família paterna foram reveladas, em especial, sobre sua avó Maria de Souza Martins, a Mãe Maria, e o contexto de nascimento de seu filho, Alberto, pai de Martins. Um dos indícios de que algo tinha sido omitido é o fato de Alberto ter herdado apenas o nome de sua mãe. No segundo capítulo “Encontro na Estação Victoria” podemos conhecer mais sobre a família materna do autor, que emigrou da Espanha duas vezes, a primeira para Argentina e a segunda e definitiva para o Brasil, onde após trabalharem nos cafezais, construíram sua própria casa de pau a pique no bairro caipira do Arriá em Pinhalzinho (SP). Entre as memórias compartilhadas, Martins nos revela como foi a morte de seu avô materno e de uma de suas tias, ainda pequena, tragédia que repercutiu na personalidade de sua mãe até os últimos dias.

No capítulo três, “Iniciação ao medo”, o autor nos conta sobre o início da sua vida escolar em um externato católico, com regras rígidas de comportamento, após a morte precoce do pai e a necessidade de sua mãe trabalhar. Outra mudança significativa na vida de Martins e seu irmão foi o segundo casamento de sua mãe, que os levou a morar na área rural, em um pequeno lote de terra em Guaianazes. No capítulo quatro, “A arca encantada”, temos um interessante relato de um evento ocorrido nessa passagem do autor pela roça: a busca de um baú cheio de moedas de ouro enterrado por um antigo senhor de escravos. No capítulo “A cachorra Lembrança”, a partir das dificuldades vivenciadas por Martins e sua família em Guaianazes, o autor faz uma profunda reflexão sobre as principais oposições entre a cultura caipira e a cultura urbana.

O autor com a mãe e o irmão, em 1948, em Guaianazes

O capítulo “Moleques de rua” traz algumas questões sobre a sociabilidade infantil no subúrbio operário. Como exemplo, brinquedo e brincadeira eram coisas diferentes para eles, sendo que o brinquedo só fazia sentido se resultasse em uma atividade coletiva na rua, considerada um território livre para brincar com bola de borracha, papagaio, peão, etc. No capítulo “A margem”, o sociólogo traz à tona a cultura da sova ou a violência doméstica praticada contra os imaturos, atitude que interpreta como uma transferência injusta para os filhos das adversidades da vida operária. Tal prática ocasionou a separação definitiva de sua mãe e seu padrasto. O capítulo “Cada dia do nosso pão” aborda uma nova fase da sua vida familiar e profissional, quando ainda adolescente consegue um emprego na Cerâmica São Caetano.

“Vida intransitiva” traz uma reflexão sobre os conflitos culturais vivenciados pelos imigrantes. O autor discute os dois casamentos de sua mãe, o primeiro com seu pai português, que representou a vitória da cultura europeia e a negação do mundo caipira, e o segundo com seu padrasto, que configurou um retorno sem sucesso para o meio rural. No capítulo dez, “A pulga e a fé”, Martins relata suas experiências nas religiões católica e protestante, sendo esta última considerada pelo autor uma importante influência no seu autodidatismo. Na sequência, em “Os mistérios da fábrica”, o leitor encontrará uma análise detalhada de quem fez parte do sistema fabril. Cumprindo seus deveres de trabalhador na Cerâmica São Caetano, Martins presenciou fatos inusitados, como o suposto aparecimento de um demônio para uma das operárias. Acontecimento que mais tarde virou objeto de estudo do sociólogo.

No capítulo doze “Na última manhã de Getúlio” é abordada a reação à morte de Getúlio Vargas, cuja trajetória cruza com a do fundador da Cerâmica São Caetano, o engenheiro Roberto Simonsen, pioneiro na adoção de direitos sociais e fundador da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Em “A greve” colocam-se outras questões relacionadas ao trabalho na fábrica, como a invisibilidade dos trabalhadores e sua alienação. Há, inclusive, uma crítica aos sindicatos da época, que não prestavam atenção nas crianças e adolescentes. Como ressalta Martins, o trabalho e sua disciplina eram vistos como algo benéfico pelos pais operários. O capítulo catorze, “A saída do labirinto”, é um relato sobre a chegada do autor à vida adulta, a saída da fábrica e o início no curso de Formação de Professores Primários do Instituto de Educação Dr. Américo Brasiliense, de onde saiu formado para ingressar no curso de Ciências Sociais da USP.

Escrever sua própria biografia, baseada nas memórias de um homem comum, que vivenciou a pobreza e as dificuldades que dela derivam, possibilitou ao sociólogo José de Souza Martins compartilhar uma história real, repleta de incertezas e angústias que lhe são próprias, assim como as alternativas encontradas para superar as inúmeras adversidades. Na conclusão do seu livro, após tantas lembranças significativas e comoventes, o autor insiste na necessidade de voltarmos a atenção para o operário de carne e osso, aquele que vai até a fábrica porque precisa e que nela entra como objeto e não como sujeito, com ele foi um dia. Além da consciência da exploração, esse trabalhador precisa se libertar de seu passado e encontrar caminhos para promover as mudanças. Um deles seria o encontro com a grande cultura, aquela que emancipa e provoca superações.

*Historiadora, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo e agente cultural na Secretaria de Cultura de Santos. É autora do livro Casas Importadoras de Santos e seus Agentes, publicado pela Ateliê Editorial, em 2015.

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