|

Como entendemos o mundo: estruturas mentais

Acompanhe a seguir a última parte do texto:

Frames, senso comum e comunidades interpretativas

Antônio Suárez Abreu*

“Frames são estruturas mentais que moldam a maneira como vemos o mundo.”[5]Frames contêm características e expectativas ligadas a uma situação.   Se pensamos em casamento, associamos imediatamente a essa situação características como vestido de noiva, igreja, alianças, padrinhos, festa, bolo de casamento etc.   Se pensamos em Natal, associamos imediatamente a essa situação características como nascimento de Cristo, árvore de natal, confraternização, presentes etc.  Todas essas particularidades estão também associadas a expectativas ou “scripts”.   Esperamos que, ao iniciar-se um casamento na igreja, o noivo esteja presente  no altar e que a noiva seja conduzida pelo pai até lá, vindos ambos da porta da igreja pela nave central.  Uma situação em que a noiva já estivesse previamente junto ao altar e o noivo fosse conduzido até lá pela mãe quebraria a expectativa desse frame, deixando os presentes à cerimônia bastante confusos e até mesmo emocionalmente abalados.

O conjunto de frames ligados às várias situações do nosso dia a dia compõe aquilo que chamamos senso comum, criando o que Robin Lakoff chama de comunidades interpretativas, em que as pessoas compartilham similaridades abstratas como gênero, simpatias políticas, preferências estéticas, profissões.  [6]

É preciso dizer que senso comum não se confunde com bom-senso e que, muitas vezes, não tem lógica alguma.  O senso comum, durante a Idade Média, era que a Terra era plana e que um navio que saísse do Mar Mediterrâneo, ultrapassando as “Colunas de Hércules” (estreito de Gibraltar), iria fatalmente cair num abismo.  O senso comum, para os partidários do regime nazista, era que os judeus eram uma raça inferiore daninha que precisava ser eliminada.

Bem, a partir desses exemplos, você já deve ter percebido que o senso comum e, portanto, as comunidades interpretativas estão sempre vinculados à uma cultura e a um  momento histórico.    A escritora Susan Sontag, em seu livro Doença como Metáfora[7], nos conta que, durante o Romantismo, a tuberculose era vista como uma variante da doença do amor.  Segundo ela, “Moças abatidas, de peito cavado, e rapazes pálidos e raquíticos competiam entre si como candidatos a essa doença incurável (na época), na maioria dos casos, incapacitante e de fato terrível.  “Quando eu era jovem”, escreveu Théophile Gautier [8], “não podia aceitar como poeta lírico alguém que pesasse mais de quarenta e cinco quilos’ ” .

Como um exemplo da força do comportamento das comunidades interpretativas vinculadas ao senso comum no campo da Medicina, é emblemático o caso da situação enfrentada pelo médico húngaro Ignaz Philipp Semmelweis (1818-1865), em uma clínica obstétrica em Viena, em 1846, na qual eram instruídos os estudantes de Medicina. Nessa clínica, a maioria das mulheres morria de febre puerperal.  Depois de cuidadosos estudos, Semmelweis desconfiou que elas eram contaminadas pelos estudantes que, ao saírem das aulas práticas de anatomia, em que manipulavam cadáveres, apenas limpavam as mãos no avental, antes de examinar as mulheres grávidas.   Semmelweis, então, obrigou os estudantes a lavar cuidadosamente as mãos depois de saírem da sala de anatomia, o que diminuiu drasticamente as mortes.    Mas, ao contrário do que se esperava, o diretor da clínica e os estudantes criticaram duramente Semmelweis que, logo depois, teve de abandonar a Áustria e voltar para sua terra natal, a Hungria.  Simplesmente, o senso comum dos médicos não aceitava que eles próprios fossem a causa da morte das mulheres.    Afinal, apenas a partir de 1870, as ideias de Pasteur começaram a ser aplicadas aos hospitais, principalmente aos hospitais militares, que passaram a ferver os instrumentos e as bandagens que seriam utilizados nos procedimentos cirúrgicos.

Louis Pasteur

Segundo Robin Lakoff, no livro há pouco citado, “o senso comum de uma ideia é determinado pela maneira como ela se acomoda  dentro de um frame aceito em um certo momento pela maioria das pessoas influentes.  E uma vez que uma ideia se torna senso comum, incluída em um frame aceito de modo geral, ela se torna muito resistente à mudança.  Outras ideias se agregam em torno dela dando-lhe credibilidade e fazendo com que sua renúncia seja até mesmo algo perturbador.   Nós precisamos de nossos frames e suposições convencionais.  Eles formam a cola que mantém juntas as culturas e permitem aos indivíduos, dentro dessas culturas, sentir-se como membros competentes de uma comunidade coesa.  Nós nos apegamos até mesmo a opiniões desacreditadas, não apenas por ignorância, mas por medo de que sejamos deixados sós, desconcertados, e não completamente humanos sem elas.” [9]

Concluindo, podemos dizer que, em termos de senso comum, o que nos afeta não são os fatos, mas a percepção que temos dos fatos  a partir dos nossos frames.   Vemos o mundo por meio de filtros.  Pomos coisas dentro de nossas cabeças e passamos a ver o mundo apenas a partir daquilo que está dentro dela.

 

 

*Tem mestrado, doutorado e livre-docência pela USP, pós-doutorado pela UNICAMP, é professor titular de língua portuguesa da UNESP, membro da Academia Campinense de Letras e autor, entre outros, dos livros: Gramática Mínima para Domínio da Língua Padrão (Ateliê), O Design da Escrita (Ateliê) e Texto e gramática: uma integração funcional para a leitura e escrita (Melhoramentos).

Conheça outras obras de Antônio Suárez Abreu

 

Referências

BONFIM, Paulo.  Migalhas de Paulo Bonfim, Ribeirão Preto: Ed. Migalhas, 2014.

DAMÁSIO, António.  O Erro de Descartes, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

HOFSTADTER, Douglas & SANDER, Emmanuel. Surfaces and essences: analogy as the fuel and fire of thinking, New York: Basic Books, 2013.

 

LAKOFF, George. Don’t Think of an Elephant!, Vermont: Chelsea Green Publishing, 2014 [2004].

LAKOFF, Robin.  The Language War, Los Angeles: UniversityofCalifornia Press, 2000.

SONTAG, Susan.  Doença como Metáfora.  Aids e suas metáforas.  Trad. de Rubens Figueiredo e Paulo Henriques Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

[5]George Lakoff, Don’t think of an elephant! p. xi.  No original: Frames are mental strutures that shape the way we see the world.

[6]Robin Lakoff, The Language War, 2000, p. 13.

[7]Susan Sontag, Doença como metáfora.  Aids e suas metáforas, 2007, p. 31.

[8]Poeta, escritor e crítico literário francês do século XIX.

[9]Robin Lakoff, The Language War, 2000, pp. 49-50.  No original: the common sense of an idea is determined by its fit within a frame currently accepted by a majority of influential people. And once an idea becomes common sense, included in a generally accepted frame, it be- comes very resistant to change. Other ideas accrete around it, lending it credibility and making its abandonment even more disturbing. We need our frames and conventional assumptions. These forms the glue that holds cultures together and allows individuals within those cultures to feel like competent members of a cohesive community. We cling to even discredit beliefs, not only out of ignorance, but equally in fear that we would be left alone, bewildered, and not fully human without them.

Deixe uma resposta