Melodias em Estado Nascente

Por Renato Tardivo*

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A primeira característica a se destacar neste ensaio sobre À Sombra das Raparigas em Flor é o trânsito minucioso empreendido pelo autor entre excertos do segundo volume de Em Busca do Tempo Perdido, manuscritos de Proust e a fina interpretação construída em dezesseis capítulos, divididos em duas partes.

Como se trata de um ensaísta de formação psicanalítica, coloca-se a questão: a que se presta o recurso à psicanálise, visto que se trata de literatura? Muitos são os estudos acerca dessa relação que encerram a obra literária em teorias e conceitos psicanalíticos pré-concebidos. Tal uso, vale dizer, parece servir mais à validação da psicanálise. No ensaioOs Processos de Criação em ‘À Sombra das Raparigas em Flor’”, de Philippe Willemart, por outro lado, o recurso à psicanálise enriquece, e muito, as possibilidades interpretativas do livro analisado e de seu processo de criação.

Isso ocorre, por exemplo, no capítulo “A Arte do Retrato”. Escreve o autor: “Não posso deixar passar este trecho sem observar o paralelo entre ‘a iluminação retrospectiva’ e o ‘só depois’ freudiano. Enquanto este reina na análise e permite ao analisando encontrar uma lógica no seu passado […] o escritor já autor num movimento muito mais amplo dá também uma olhada no passado da escritura para encontrar aí uma lógica que poderia chamar genética”.

É observada a temporalidade freudiana do après-coup, ou só depois, marcada pela mistura de tempos e constantes ressignificações. Célebre nesse sentido são as madeleines do primeiro volume…

Há um capítulo poeticamente intitulado “Como Criar a Lembrança de uma Melodia”, que, além de também aludir ao só depois, remete diretamente ao livro de Proust e à pulsão invocante, expressão contida no subtítulo do ensaio de Willemart. Pulsão invocante é aquela que se refere aos chamamentos: ser chamado, se fazer chamar, chamar.

É por essa trama expressiva que o ensaio aborda o enredo e o seu processo de criação, isto é, o momento em que a obra se apresentava em estado nascente, à espera de ser criada. Com densidade intelectual e escrita fluida, este livro acrescentará ao leitor de Proust e pode ser um convite à leitura deste clássico da literatura.

 

*Escritor, psicanalista, professor universitário e doutor em Psicologia Social pela USP. Publicou, entre outros, os livros Girassol Voltado para a Terra (Ateliê), Do Avesso (Com-Arte/USP) e Silente (7Letras), e o ensaio de Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê).

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