Aventuras distantes de Palmeirim de Inglaterra

Por Renata de Albuquerque

Capa Palmeirim 1

Palmeirim de Inglaterra não é apenas uma novela de cavalaria. O texto, escrito por Francisco de Moraes, faz parte de um ciclo, o que por si só explica a importância da obra. Nesta edição que a Ateliê acaba de lançar, os pesquisadores Lênia Márcia Mongelli, Raúl Cesar Gouveia Fernandes e Fernando Maués realizaram um minucioso e primoroso trabalho, transcrevendo a partir de várias fontes para poder chegar a um resultado fidedigno, que interferisse minimamente no estilo original – um dos pontos altos da obra.

A seguir, a crítica literária, especializada em Literatura Portuguesa e professora da USP, Lênia Márcia Mongelli, fala a respeito do lançamento:

 

Das novelas portuguesas de cavalaria mais difundidas, por que a escolha por editar Palmeirim de Inglaterra?

Na formulação da pergunta já está uma parte da resposta: a novelística de cavalaria é de extração francesa e teve seu momento mais significativo nos séculos XII, XIII e XIV. É no século XVI, no entanto, que o modelo se “nacionaliza” em Portugal, através principalmente de três títulos, entre os vários ainda por editar: Crônica do Imperador Clarimundo, de João de Barros (1520);  Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes (c. 1544) e O Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1567). São três belas obras, solidamente incrustadas no perfil histórico-cultural do Quinhentismo português; dentre elas, porém, só o Palmeirim gerou um “ciclo”, com numerosas “continuações”, na mesma linha da Vulgata e da Pós-Vulgata medievais ou, para falarmos de um exemplar muito mais próximo, do Amadís de Gaula, de Garci Rodríguez de Montalvo (1508), com o qual o Palmeirim tem inegáveis parentescos. A natureza cíclica da obra diz de sua enorme popularidade na Península Ibérica e fora dela, o que, acrescido de suas altas qualidades estéticas, justifica nossa escolha.

Lênia Marcia Mongelli
Lênia Marcia Mongelli

Quais são as características que fazem de Palmeirim de Inglaterra um dos melhores exemplares do gênero?

Sem dúvida, no topo da lista está o estilo clássico de Francisco de Moraes, ao qual o público terá acesso graças ao trabalho impecável dos professores Raúl, Fernando e Nanci, responsáveis pela difícil e trabalhosa transcrição dos vários originais que compulsaram – modernizados apenas o mínimo suficiente para não comprometer a bela sintaxe quinhentista, que pode ser lida, por isto mesmo, no frescor de sua extraordinária natureza mais íntima.

Como seria de esperar, decorre dessa excelência linguística o domínio que Moraes tem de técnicas como a descrição ou a caracterização de personagens – sendo este outro de seus destaques: mesmo em gênero estereotipado como são as novelas de cavalaria, o autor consegue muitas vezes “humanizar” as suas personagens, fazendo-as expressar-se não raras vezes de acordo com seu estado de espírito ou sua condição social – o que a dramaturgia de Gil Vicente já vinha consolidando. Às paisagens ou aos cerimoniais cortesãos Moraes dedica soberbas páginas descritivas, num apelo visual que torna a leitura extremamente prazerosa.

Podemos encerrar o rol com a coesão do enredo, o que não é pouco em se tratando de romances de cavalarias, tantas vezes ridicularizados justamente por sua interminável extensão, desdobrada em “continuações” episódicas envolvendo filhos e até netos dos protagonistas. Moraes segue a norma, sem dúvida (ou não teríamos o gênero cavaleiresco), mas não perde de vista os cavaleiros centrais, compondo com verossimilhança a história de vida deles e daqueles que lhes são de alguma maneira filiados.

 

Na página 26, temos uma perspectiva de Mario  Vargas Llosa sobre ler livros de cavalaria no século XX. O que dizer a jovens super conectados com a internet, que buscam informações rápidas, sobre a importância desse gênero? Qual a importância de Palmeirim de Inglaterra no contexto do século XXI?

Para começo de conversa, são dois mundos distintos, o dos livros e o das “informações rápidas internéticas”, quer você leia uma obra da antiguidade clássica ou medieval divulgada online, quer do século XXI, impressa: em ambos os casos, é preciso REFLETIR sobre o que se lê e isto, é claro, demanda tempo. Aliás, os que têm o hábito da leitura crítica ou com reflexão sabem que está justamente aí o enorme prazer que tal leitura causa.

Se o leitor de hoje estiver disposto a enfrentar essa barreira da “rapidez”, reconhecerá de pronto, na armadura do passado, alguns ingredientes que fazem a delícia do cinema moderno e dos romances de aventuras de sempre: Palmeirim de Inglaterra ou seu irmão Floriano do Deserto estão na mesma linha combativa de heróis mitológicos como Hércules, Aquiles, Ulisses; românticos, como Robinson Crusoé, Robin Hood; ou de gibis/quadrinhos, como Homem Aranha, Batman, Fantasma. Todos eles lutam por grandes causas humanitárias, pelo bem coletivo, enfrentam inimigos reais ou imaginários, além de estar sempre enredados com a amada “difícil”, cuja conquista demanda um bocado de esforço.  Talvez por todo este empenho é que eles sejam tão fortes, tão íntegros, tão superiores de espírito e, consequentemente, modelares, alimentando os sonhos de perfeição de muitos de nós.  Ou seja, como toda grande obra, esta novela é inclusive útil.

 

Este romance é parte de um ciclo de “Palmeirins”. Que lugar ele ocupa neste panorama?

Num capítulo da Introdução intitulado “O Ciclo dos Palmeirins”, o leitor encontrará o quadro completo da árvore genealógica da família palmeiriniana, com comentários que situam cada obra no conjunto cíclico. Neste estema, vê-se que dois importantes títulos antecederam o Palmeirim de Inglaterra, compondo a ascendência de suas principais personagens e a linhagem delas – aspecto tão importante no universo geralmente patrilinear da ficção cavaleiresca: Palmerín de Oliva (1511) e Primaleón (1512), ambos ainda hoje de autoria incerta e com várias edições ao longo do século XVI. Um terceiro título deve ser lembrado, embora sem a mesma repercussão dos outros dois: Platir (1533), cujo protagonista é um dos filhos de Primaleão.

Assim, o Palmeirim de Inglaterra seria o quarto livro da série cíclica, embora com existência independente, como os demais. Durante muito tempo sua notoriedade deveu-se a uma acirrada polêmica em torno da autoria espanhola ou portuguesa do livro; resolvida definitivamente a questão em favor dos portugueses, ele passou a merecer atenção por ter “aportuguesado” a matéria deste ciclo, até ali de propriedade espanhola.

Palmeirim 1

Há uma descrição de costumes e indumentárias muito detalhada em Palmeirim de Inglaterra. Em que medida podemos dizer que esta é uma descrição fiel da época ou que ela teria sido influenciada por uma “fantasia” criada por outros romances cavaleirescos?

A questão coloca em causa os famosos e velhos limites entre realidade e ficção, que já desde Aristóteles ocuparam os interesses dos letrados: qual é a margem de “realismo” da ficção  ou, em outras palavras, é preciso pedir à ficção que seja “realista”? A questão – pra lá de intrincada –  continua atualíssima: basta dar uma espiada nos critérios que geralmente movem as escolas ao definir o rol das leituras indicadas aos seus alunos  ou, em outro patamar, nas querelas que alimentam tantas das discussões entre historiadores e literatos sobre conceitos de “verdade textual”.

Para não extrapolarmos da pergunta, conforme o assunto prevê, assentemos: as novelas/romances  de cavalarias parecem, à primeira vista, pura e desvairada “fantasia”, com seu vasto elenco de gigantes, de magos, feiticeiras e demônios, de animais monstruosos, de castelos assombrados e ilhas misteriosas, de poções milagrosas e juramentos impossíveis – tudo aparentemente destinado  ao lazer de cortesãos ociosos, ávidos leitores dessa espécie de livros.

Mas, como se sabe e é bom sempre recordar, o universo ficcional é simbólico, é representação, realizada com maior ou menor ênfase, com maior ou menor qualidade pelo autor, estratégia que cumpre a nós, leitores, desvendar ou decifrar. Neste caso, o pano de fundo do mundo representado – e para o qual a ficção aponta diretamente – é o Quinhentismo, principalmente ibérico, quando estão na ordem do dia vários “renascimentos” científicos/econômicos/políticos/religiosos e várias mudanças geográficas, trazidas inclusive pelo período das Navegações.  Se alguém já leu algum diário de bordo de algum navegante que esteve realmente nos mares a partir do século XV, a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, ou o Tratado das Coisas da China, de Frei Gaspar da Cruz, verá ali descrições e relatos de cenas que poderiam perfeitamente ter sido escritos pela pena “fantasiosa” de Francisco de Moraes.

E ainda: sendo o nosso novelista pessoa de estreita convivência com a nobreza, tendo a ela servido e com ela viajado, era de esperar que impregnasse seu texto, como o fez, da “realidade” que era, de fato, a sua. Se não se pode jamais falar em “descrição fiel da época”(conforme a pergunta formula), por conta dos “limites” antes referidos e que abarcam uma gama variada de implicações, deve-se, contudo, reconhecer que comportamentos humanos e relações sociais estão, sim, “realisticamente” reinventados no Palmeirim de Inglaterra. Esta é, aliás, uma das chaves do sucesso da obra.

 

A questão dos gêmeos e do duplo está presente de maneira muito profunda em Palmeirim de Inglaterra. Nos textos introdutórios que este volume apresenta, alguns outros gêmeos são aludidos, como Caim e Abel, Castor e Pólux. É possível fazer algum paralelo com Rômulo e Remo, fundadores de Roma – e, por extensão, de todo um Império que de certa maneira tem pontos de contato com as conquistas retratadas nos romances de cavalaria?

Não, porque não há qualquer espécie de rivalidade entre Palmeirim e Floriano – política, familiar ou amorosa, conforme são caracterizados os gêmeos mais notáveis da História: se Castor e Pólux são exemplos de uma fraternidade indissolúvel, não assim Caim e Abel, Rômulo e Remo ou Esaú e Jacó, para sempre cindidos por ódios, ciúmes e disputas várias, tema tão certeiramente aproveitado pelo Machado de Assis de Esaú e Jacó (1904) na retratação dos conflitos que cercaram o nascimento da República no Brasil.

Palmeirim e Floriano distinguem-se pela personalidade oposta – sóbrio, discreto, comedido e fidelíssimo amante, o primeiro; estouvado, impulsivo, irreverente e amador inconstante, o segundo, polaridade que o autor, singularmente, examina à exaustão. A dupla está muito próxima da concepção de Amadis e seu irmão Galaor, protagonistas do Amadis de Gaula, novela que, já o dissemos, é uma das importantes fontes de inspiração de Francisco de Moraes. As diferenças entre os irmãos vêm à tona ao longo das peripécias aventurosas em que ambos se metem: após complicado nascimento, são roubados por um selvagem e por ele criados até a idade de 12 anos; perdem-se um do outro e vão dar na corte dos avós, com identidade oculta; sob ela combatem duramente, sem saber que são irmãos; a cena do “reconhecimento” coroa a amizade entre os dois, bem como os felizes casamentos do epílogo. O leitor habituado ao gênero já terá depreendido aqui ecos do Persival de Chrétien de Troyes ou o comportamento dos heróis da tradição oral, folclórica, cujos parâmetros foram tão bem estudados por Mircea Eliade.

2 Comentários

Deixe uma resposta para Renata AlbuquerqueCancelar resposta