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Pulsação viva

 Por: Renato Tardivo

tempo vivo da memoria

Qual é o tempo da memória?

Apressadamente, talvez respondêssemos ser o tempo passado. No entanto, O Tempo Vivo da Memória, livro clássico da Psicologia Social brasileira, escrito por Ecléa Bosi, trata de problematizar essa resposta, desde o título.

O livro reúne diversos ensaios que, tendo a temática da memória como fio condutor, incluem reflexões teóricas, dados de pesquisa de campo, análises de obras de arte e objetos da cultura, estudos sobre a obra de Simone Weil, entre outros.

Não se trata de um livro técnico ou com academicismos. Uma das características comuns a todos os capítulos é a profundidade dos temas que abordam e a simplicidade com que o fazem, de modo que se trate de um livro sobre todos nós e, como escreve José Moura Gonçalves Filho no texto da orelha, “um livro para todos”.

 

O vivido por acontecer

Atentando no início para os aspectos do cotidiano e seu dinamismo, o que os afasta das definições estanques e cronológicas (a que estamos mais acostumados) de História, Ecléa Bosi nos mostra que o tempo da memória não é o tempo morto dos calendários, mas o tempo “de outra história mais densa”, o tempo das pequenas coisas, dos gestos, o tempo que nos une a todos e que, por isso mesmo, escapa a qualquer apreensão definitiva. Com efeito, mais do que acessar o passado, a memória o faz reviver.

Amparada na Psicologia da Gestalt e Bergson, a autora considera que o passado se conserva, mas não de forma homogênea. Uma lembrança, ao virar figura, altera o fundo – o todo de que é parte. E vice-versa.

É assim que, do trabalho dos operários, Ecléa extrai verdadeiras joias: “combinam sob forma nova os fragmentos de matéria de um meio que é anômico, os detrimentos e migalhas da sociedade industrial, imprimindo a esses conjuntos o encanto que só poderia emanar da classe voltada como nenhuma outra para os valores de uso”.

O tempo vivo – portanto, por acontecer – da memória – portanto, vivido – é inapreensível e, concomitantemente, tudo o que temos.

 

Enraizamento e memória

Simone Weil
Simone Weil

Já havia tomado contato com este livro, cuja primeira edição é de 2003 e a segunda de 2004, em outras ocasiões. Fui aluno de Ecléa Bosi em 2002 – tempo em que as ideias a ser publicadas habitavam melodicamente suas aulas –, bem como o lera em 2005, para a seleção do mestrado em Psicologia Social. Nesse sentido, a releitura me trouxe a temática mesma da obra, convidando-me à revivescência de outros tempos.

Ao fim, quando cheguei aos estudos sobre a obra de Simone Weil, ocorreu-me algo que vivi recentemente. Conversava com meus pais sobre os últimos dias de vida do meu avô, talvez minha experiência mais próxima da morte de que tenho memória, e lembrei-me de um sonho que ele teve. Em coma profundo por alguns dias – e desacreditado pelos médicos –, meu avô despertou completamente lúcido. Consumido pelo câncer, ele nos contou um sonho… Estava aprisionado em uma aldeia indígena e, no julgamento que poderia condená-lo à morte, fora absolvido.

Além do sonho, de que também meus pais tinham memória, lembrei-me de que ele despertara com vontade de comer pastel de feira. Evidentemente, trazer um pastel para um paciente terminal feria as regras do hospital, de modo que, não sei se ajudado pelo fato de meu pai, filho dele, ser médico do hospital ou se contando com a compaixão da equipe médica, conseguimos trazer o tal pastel.

Lembro-me da cena: meu avô, pele e osso, mastigando com prazer, como se fosse hoje. Contudo, nem me pai nem minha mãe lembraram-se disso. “Há coisas de que só as crianças se lembram”, disse minha mãe. Em um primeiro momento me irritei: como não se lembravam de algo tão relevante? Sem a comprovação deles, estaria a veracidade de minha memória posta em cheque?

Mas logo me reconfortei no privilégio que ser o guardião do que uma cena como aquela implica: um pedacinho de minhas raízes, à iminência de nos deixar para se tornar memória, pulsando vivo dentro de mim a magia de uma herança por despertar, talvez não muito diferente da experiência de voltar de um coma irreversível.

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