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Para loucos por livros, um livro sobre livros

A Casa dos Seis Tostões é uma história bem contada, recheada de informações reais sobre livros, para o deleite de editores, escritores e demais profissionais do mercado editorial, amantes da arte do livro e da leitura. Lançamento da Ateliê Editorial, vai ser a próxima leitura da fotógrafa Lucia Mindlin Loeb, que trabalha com arte em livros e concedeu entrevista exclusiva para o blog 

 

Por Katherine Funke*

Se você está lendo este blog, possui certo grau de loucura por livros, digo, loucura suficiente para desejar e, quem sabe, comprar mais livros do que pode ler ou guardar. Ou, mais loucura ainda: paixão, e o bastante para transformar o livro em seu trabalho, em uma livraria, sebo ou biblioteca. Mais um passo, e aí já está escrevendo, revisando ou editando livros. E, como a fotógrafa e artista visual Lucia Mindlin Loeb, deixando o livro “atravessar” sua trajetória e vice-versa – a ponto de criar e editar livros aparentemente impossíveis ou incoerentes, com a mesma fotografia impressa em todas as páginas ou serrado em duas partes (veja a entrevista com a artista)

Isto ainda não é loucura suficiente? Então junte toda uma vida relacionada ao livro, case com alguém que também está escrevendo um livro, tenha um filho e, enquanto está corrigindo as provas do seu primeiro livro a ser publicado, e seu bebê ainda precisa ser amamentado, venda sua bela casa nas colinas da Califórnia e se mude para uma pequena cidade no interior do País de Gales, com mil e quinhentos habitantes e quarenta livrarias.

Casa dos seis tostoesEsta é a história de A Casa dos Seis Tostões – Perdido numa Cidade de Livros, lançamento da Ateliê Editorial. Um livro que remete a muitos, muitos outros livros, desde a capa, em que dimensões diferentes de tipografia convivem na página, enquadrados de modo a dar ideia de que aí estão três títulos em um só. Solução genial de design: afinal,não existe livro solitário. Pelo menos desde Mallarmé e seus textos sobre o livro como instrumento espiritual, sabemos que os livros se comunicam, se exigem, demandam interações infinitas, entre diferentes épocas, edições, editorações e escritas.

Esta saborosa obra de Paul Collins, traduzida do inglês americano por Marcello Rollemberg e Ana Maria Fiorini, deleita ao mesmo tempo bibliófilos, amantes da cultura do livro, assim como quem procura uma leitura leve, dotada da fluidez de um narrador “encarregado de ver divinamente”, diria Mallarmé no ensaio citado, capaz de contar “das relações entre tudo.”

É por isso que um público tão abrangente pode se deliciar com A Casa dos Seis Tostões: Collins consegue relacionar as marcantes diferenças entre britânicos e americanos com o jeito como é recebido por colegas de trabalho, por exemplo. Entrelaça sua vida pessoal mais visível – é uma história autobiográfica –, isto é, os cuidados com o bebê, com aquilo que profissionalmente oferece de mais mágico – uma pesquisa vasta, dinâmica, sobre diferentes etapas da literatura e da cultura do livro. É a vida em todas as suas circunstâncias, dentro e fora do livro.

Em Hay-on-Wye, Collins tem muitas oportunidades para entrar no assunto do livro,  desde descrever as aventuras do inusitado trabalho temporário como “especialista em literatura americana” em uma anárquica loja gigante de livros usados até o processo de edição de um novo título, sofrido por ninguém menos que o próprio autor.

Pesquisas

O ruim de um livro tão bom é que ele, de um modo ou outro, acaba. Mas, também, não acaba: a diversão posterior é pesquisar, por conta própria, as centenas de dados apresentados sobre autores raros ou conhecidos, fatos peculiares e edições marcantes da história do livro. A uma pessoa ansiosa por informação de qualidade, como eu e Collins, difícil, na verdade, é parar de pesquisar coisas como: desde quando os livros têm sobrecapas? Quando o livro passou a ser produto popular? Existiu mesmo o título I was Hitler’s Maid?

Outra pausa útil, provocada pelo autor durante a leitura, pode ser dada para que se pense em temas metafísicos como o da duração de um livro, não só como objeto físico (delicado, especialmente quando antigo), mas também do que foi lido: o modo como ecoa ou interage com o que surge décadas, ou séculos depois.

Outro tema, mais misterioso ainda, é como, apesar de serem tantos fatores em torno do sucesso de um livro, não há fórmula que possa antever o que vai se tornar um bestseller e o que, por outro lado, será colocado na pilha do saldão. Collins conta casos de fracasso e sucesso com facilidade, dando a entender que pesquisa o tema há tanto tempo quanto se entende como leitor.

Aliás, para que escrever um livro sobre livros se já existem tantos outros livros sobre livros? “Para quê? É preciso arriscar: é preciso escrever sobre o livro por uma libertação”, responderia o filósofo francês Jean-Luc Nancy, em um texto chamado “As Razões de Escrever” (em: Demanda – Literatura e Filosofia, Edufsc, 2016).

Libertar-se de quê? Bem, talvez de um modelo ou de uma expectativa. Sabe-se lá. Cada caso, um caso. Neste, Paul Collins encontra um modo totalmente original de contar um pedaço da sua vida em que esteve, mais do que nunca, mergulhado em livros.

Tarefa infinita

Hay On Wye
Hay On Wye

Collins encontrou uma atmosfera envolvente e dinâmica na Booth’s, um sebo gigante com várias sedes espalhadas pela cidade. Ali, contratado como especialista em literatura americana, ele trabalhou durante alguns meses, até dar por terminada a tarefa de organizar uma seção em um dos prédios.

Mas o problema (e a maravilha) de trabalhar na Booth’s parece ser o fato de que há livros demais para serem organizados, e diferentes modos de sistematização e hierarquização de acervo convivendo década após década nos vários imóveis pelos quais se espalha a livraria. Collins compara o modelo de negócios da Booth’s com o de concorrentes da cidade; ao mesmo tempo, também dá um ar muito humano, contraditório e engraçado para o antigo patrão e colegas de trabalho, revelando que, além de prestar atenção em livros, lia também as pessoas ao seu redor.

Ao final do seu contrato na Booth’s, e com seu próprio livro já na etapa da revisão final (que volta dos Estados Unidos pelo correio com dezenas de bilhetes cheios de dúvidas colados no manuscrito), Collins também decide voltar para casa.

O problema é que já não era tão estrangeiro assim em Hay-on-Wye, e já não tinha um lar para chamar de seu nos Estados Unidos: dilema existencial que, poderíamos dizer, foi antecipado por outro livro, O Estrangeiro, de Albert Camus – mas isto é outra história… O que importa é que Collins não parece se preocupar demais com o que vem depois. Ao contrário, cada uma das páginas desse seu delicioso livro de memórias, especialmente as páginas finais, condensam todo aquele tipo de “informação inútil” pelo qual nós, bibliófilos, escritores, jornalistas, editores, somos absolutamente apaixonados.

E, se não adianto nesta resenha mais nenhum desses detalhes, é porque consideraria um spoiler mais grave do que contar que, enfim, a família de Collins não fixa moradia em Hay-on-Wye.

* Escritora, jornalista e mestranda em Literatura pela UFSC. 

 

2 Comentários


  1. Renata, gostei muito do blog, que não conhecia ainda!
    E. não por acaso, adorei a entrevista da Lucia, por reunir o trabalho dela, tão bonito, e por falar de livros… Parabéns, Lu!

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