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A gênese de uma obra-prima do cinema brasileiro: Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho

Filme, que é do mesmo diretor de Velho Chico, vai além da mera adaptação e estabelece um diálogo com o livro que o originou

por Fabio Camarneiro*

lavourarcaica

Apesar de hoje parecer banal pensarmos o cinema como uma forma artística séria – a chamada “sétima” arte –, houve um lento processo para que os cineastas fossem reconhecidos para além de meros técnicos a serviço de uma dramaturgia na maioria das vezes pasteurizada. Um dos importantes pontos de virada nessa história é o célebre livro com as entrevistas que o francês François Truffaut (autor de Os incompreendidos, Jules e Jim, A noite americana, entre outros) realizou com o diretor Alfred Hitchcock, nome incontornável que,mesmo já bastante famoso, era contudo desprezado pelos, digamos assim, “meios intelectuais mais sérios”.

Durante a conversa com seu admirador francês, Hitchcock revela um pensamento bastante organizado a orientar cada escolha de cenário ou de luz, a escolha do elenco, a movimentação dos atores e da câmera, os cortes etc. Ou seja: há um objetivo bastante consciente em cada uma dessas escolhas, que forma esse imenso mosaico de imagens e sons que nós normalmente chamamos de “um filme”.

O livro Sobre o Filme Lavour’Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, retoma a ideia de que uma obra cinematograficamente relevante começa com um elaborado pensamento a partir da matéria fílmica. No caso do longa de estreia de Carvalho, a partir do romance de Raduan Nassar e de suas idiossincrasias literárias. Nas palavras do diretor, trata-se de um“trabalho de linguagem excepcional” que levou a uma aproximação bastante distinta da mera adaptação – a encenação do entrecho dramático – mas, ao invés disso, a um “diálogo” entre o filme e a obra original. Em certa passagem do livro, Carvalho – que atualmente dirige a novela Velho Chico – afirma que sua busca era “o exercício da narrativa não descritiva, hiperbólica, como a música árabe, a cerâmica, a dança. Eu perseguia o sensório. Era ele que me guiava.”

O resultado é um dos trabalhos mais originais e ao mesmo tempo mais celebrados do período conhecido como a chamada “Retomada” do cinema brasileiro, durante os anos 1990. Após a atividade cinematográfica ter chegado perto da extinção durante o governo do presidente Fernando Collor, era hora dos cineastas buscarem reencontrar o público. Nesse contexto, Carvalho ousou em realizar um filme longo (165 min.) e denso, com a fotografia deslumbrante de Walter Carvalho a ressaltar os estados de espírito dos personagens do romance de Raduan Nassar.

Um grupo de seis entrevistadores (José Carlos Avellar, Geraldo Sarno, Miguel Pereira, Ivana Bentes, Arnaldo Carrilho e Liliane Heynemann) coloca Carvalho para discorrer sobre suas opções estéticas em Lavoura Arcaica, mas também sobre sua formação (vendo filmes compulsivamente na Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro), o início na profissão (como assistente de Walter Avancini na televisão), suas primeiras novelas (das quais destaca-se Renascer) e seu método ao lidar com o livro Lavoura Arcaica (o contato com elementos da cultura libanesa, mediterrânica). Durante essas conversas, aprendemos que o diretor, em busca da história de sua mãe, realizou uma viagem a Alagoas, guiado por sua antiga babá, que o fez reencontrar com as tradições da cultura no Nordeste brasileiro, tão presentes em sua origem. Ou de outra viagem ao Líbano, durante a preparação para Lavoura Arcaica, onde foi atrás dos elementos que povoariam as imagens e os sons do filme e, mais que isso, onde encontraria os fios com os quais teceria seu filme em um lento processo de imersão que, por meses, envolveu atores e equipe.

Assim, aprendemos que o diretor optou por montar o filme sequência por sequência, sem ter, de antemão, uma estrutura definida (um “começo, meio e fim” para o filme como um todo) – gesto inusitado, mas que Carvalho justifica ao lembrar que queria que uma imagem ou um som, em determinada sequência, pudesse “chamar” a sequência seguinte. Também ficamos sabendo que o diretor não trabalhou com um roteiro prévio, e que – apesar de ter bastante consciência do que buscava em cada cena – lançou mão do improviso com os atores. Nesse sentido, elogia especialmente a presença de Raul Cortez, cuja entrega ao método do diretor serviu de inspiração para todo o elenco.

A escolha do menino que interpreta o jovem André e do André adulto (Selton Mello) também guardam surpresas: se este empenhou-se em impressionar o diretor para ganhar o papel, aquele foi quase atropelado por uma pessoa da equipe, golpe de sorte que o levou, mais tarde, a ser a escolha do diretor.

As pequenas histórias se sucedem com graça, e o interesse do depoimento de Carvalho pode fascinar o leigo como interessar ao conhecedor de cinema, seja ele profissional ou mero diletante. Acima de tudo, Sobre o Filme Lavour’Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, nos aproxima da realização de uma obra-prima do cinema nacional a partir das palavras de seu autor – um dos maiores diretores da TV brasileira. Ao colocar em primeiro plano, ao invés das curiosidades de bastidor ou da vida pessoal do artista, a estética fílmica e as opções do realizador, o livro preenche uma lacuna que outrora era preenchida pela imprensa especializada, cujo papel torna-se cada vez menos pertinente em nosso país. Uma importante obra para pesquisadores e interessados pelo cinema brasileiro, bem como para o público em geral.

Fabio Camarneiro é professor no curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. É doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP e mestre em Comunicação Impressa e Audiovisual pela mesma instituição.

 

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