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Euclides da Cunha: 150 anos de um dos primeiros grandes intérpretes da cultura brasileira

Por:  Renata de Albuquerque

Em 2016, comemoramos os 150 anos de nascimento de Euclides da Cunha. O escritor fluminense– que foi engenheiro, militar, naturalista, jornalista, geólogo, geógrafo, botânico, cartógrafo, hidrógrafo, historiador, sociólogo, e escritor – escreveu o clássico Os Sertões,  no qual retrata a Guerra de Canudos. Para falar sobre esta importante figura, o Blog da Ateliê entrevista Leopoldo M. Bernucci, professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia em Davis (EUA), para quem a leitura do autor de Os Sertões tem uma atualidade surpreendente. Bernucci é responsável por edição, prefácio, cronologia, notas e índices do livro Os Sertões – Campanha de Canudos e também pela apresentação de Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trópicos, ambos da Ateliê Editorial.

Leopoldo-BernucciQual é a sua ligação com Euclides da Cunha? Como surgiu o seu interesse nesse escritor e de que maneira aprofundou seus estudos e conhecimentos a respeito?

Leopoldo M. Bernucci: As minhas primeiras incursões, como estudioso, no universo literário de Euclides foram realizadas por volta de 1981, ano em que o romance do escritor peruano Mario Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo – que trata da Guerra de Canudos – foi publicado. Naqueles anos eu estava terminando o meu mestrado em Literatura Hispano-Americana na Universidade de Michigan, Ann Arbor, MI, U.S.A., depois de me formar na USP também em Letras. Foi um encontro fortuito e curioso, porque se não fosse talvez pelo interesse que eu já tinha pela literatura de Vargas Llosa, não teria chegado a Euclides da forma como cheguei. A partir desse momento, já não pude deixar de estudar a obra euclidiana, tanto pelo lado fascinante do seu universo artístico, científico, retórico e histórico como também pela necessidade de aprofundar certos aspectos de sua obra que haviam sido examinados, porém, de modo muito superficial; e outros que nem haviam sido tocados ainda.

A maneira pela qual eu fui me adentrando nos textos de Euclides foi em primeiro lugar pela via comparada; e depois, estudando os manuscritos do autor, dispersos em diversas bibliotecas, públicas e privadas, e em arquivos. Essa investigação arqueológica dos textos de Euclides foi para mim reveladora, porque descobri de repente coisas que nunca imaginara que ele pudesse ter escrito e que ficaram sem publicar durante todos esses anos; e também porque muitas vezes o estudo dos manuscritos ilumina a compreensão de textos seus já publicados, mas ilegíveis em certas passagens, dado que a porcentagem de erros tipográficos é muito alta, e sem dúvida cria um obstáculo à leitura. Assim, a comparação entre texto publicado e manuscrito lança luz sobre esses aspectos obscuros e equivocados, e oferece uma boa oportunidade para esclarecê-los ou corrigi-los em edições modernas mais cuidadosas. O que eu estou descrevendo se refere principalmente aos livros mais tardios do autor e que passaram por mãos de revisores incautos: Contraste e Confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907) e À Margem da História  (póstumo, 1909).

 

Neste ano em que se comemoram os 150 anos de Euclides da Cunha, é possível fazer um balanço de qual foi sua contribuição para o jornalismo e a literatura no Brasil?

LMB: Sem dúvida. A contribuição de Euclides da Cunha é enorme, tanto para o jornalismo como para a literatura e, acrescento ainda, as ciências, a cultura e a nossa história. Não devemos nos esquecer de que Euclides foi também um militante ativo em prol da República, e que portanto defendia os ideais democráticos constantemente em seus artigos na imprensa. Sintetizando, poderíamos dizer que ele é um dos primeiros grandes intérpretes da cultura brasileira. Euclides nos mostrou esse talento, principalmente, através de Os Sertões, mas também em outros textos sobre a Amazônia, por exemplo, publicados em Contrastes e Confrontos e À Margem da História. A sua obra magna, Os Sertões, quando publicada em 1902, elevou a sua estatura de excelente e combatente escritor mais ainda. Descobriu-se que seu dom literário e historiográfico era agudíssimo e essa obra não só começou a ser lida como livro de história mas também como obra literária, já que o seu belo e complexo discurso se equipara ao dos melhores romances da literatura mundial. A alta qualidade retórica da linguagem de Os Sertões por si só faz dele um dos grandes livros da literatura brasileira de todos os tempos. Esta, quando aliada ao desenho épico do livro e a sofisticados recursos estilísticos e retóricos, já bastaria para defini-lo como objeto dos estudos literários, sem que – e isto é muito importante frisar – o  consideremos ficcional. A feliz adequação de um achado estético (sua linguagem) ao assunto histórico é o que transforma esta obra em objeto de arte, salvando-a de permanecer somente no mundo da historiografia ou do ensaio sociológico, como também Os Sertões pode ser lido, evidentemente. Para concluir a minha resposta a essa pergunta, devo repetir algo que já disse alhures: que a dívida de Euclides para com o jornalismo é enorme. Na imprensa, como jornalista, ele encontrou um modo de apresentar suas ideias antes de lançá-las em capítulos de livros escritos mais tarde por ele. Fora dela, na sua condição de leitor, Euclides canibalizou artigos e editoriais que foram absolutamente importantes para a confecção da sua narrativa sobre Canudos (ver sobre este assunto o meu livro A Imitação dos Sentidos: Prógonos e Epígonos de Euclides da Cunha).

A atualidade de Euclides da Cunha é enorme e até surpreendente. Leio trechos de seus escritos que serviriam muito bem para entender os dias que estamos vivendo no Brasil

Qual o legado dessa importante figura ainda hoje?

LMB: A atualidade de Euclides da Cunha é enorme e até surpreendente. Leio trechos de seus escritos que serviriam muito bem para entender os dias que estamos vivendo no Brasil. Nesses textos encontram-se observações sobre o desrespeito à democracia durante a primeira República, a perniciosa herança do colonialismo, o populismo, a perda da Razão como resultado do fanatismo político e religioso, o favoritismo político, a corrupção do governo e o esvaecimento da confiança nas instituições públicas. A sua crítica à nossa cultura e ao nosso modo de ser, plasmada naquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamaria depois o “homem cordial”, não poderia ser mais clara em alguns de seus escritos. Em suma, Euclides quando escrevia não podia deixar de fazer sempre um balanço da destruição paulatina, embora vigorosa do nosso idealismo, tão aviltado pelos interesses individuais e mesquinhos e pelos vícios de políticas interesseiras em detrimento da coisa pública. É claro que, diante deste quadro Euclides já preludiava o que estamos vendo hoje em dia: a dificuldade e até mesmo a impossibilidade de conceber uma nação genuinamente republicana e democrática, dedicada ao bem-estar público e não ao privado. Compartilhamos do seu ceticismo daquela época porque é o mesmo ceticismo que vivemos hoje com respeito ao nosso país. Assim, damo-nos conta de que, infelizmente, pouca coisa mudou desde então.

 

capa sertoes

A edição da Ateliê de Os Sertões – A Campanha de Canudos tem notas, prefácio e cronologia de sua autoria. Pode, por gentileza, contar-nos como foi realizar esse trabalho, quais foram os maiores desafios desse grande projeto? Quanto tempo o senhor esteve envolvido nesse trabalho?

LMB: A ideia dessa edição partiu de dois grandes amigos meus, Plínio Martins Filho, editor da Ateliê e do nosso saudoso Ivan Teixeira, professor também da ECA. Na verdade, eles foram os que, de modo conceitual, me sugeriram essa edição com esse formato. Eu gostei da sugestão e comecei a trabalhar imediatamente nesse projeto. Acredito que foi por volta de 1995, quando eu morava no Colorado, que dei início a essa edição. Foram meses dedicados a esse projeto, entre outros afazeres do meio acadêmico, evidentemente. A nossa preocupação era oferecer uma edição que mantivesse o maior respeito pelo texto de Euclides e que facilitasse a leitura de Os Sertões. Euclides é um escritor difícil, sem dúvida, mas quando conseguimos romper essa camada de dificuldades de seu texto, o prazer de lê-lo, então, torna-se insuperável. Os maiores desafios, para mim foram, em primeiro lugar, fazer toda a pesquisa das fontes do livro. Em seguida, e isto não era menos desafiante, tive que estabelecer o texto, isto é, “corrigi-lo”, comparando-o com as primeiras edições publicadas e com os fragmentos de manuscritos. Esta última tarefa era necessária para que obtivéssemos uma melhor leitura, inclusive no que diz respeito à virgulação e à pontuação dessa obra. Finalmente, e isto foi mais prazer do que trabalho, era necessário mostrar em forma de Prefácio ao leitor o tipo de livro – aliás único na história da literatura do Brasil – que ele é, no qual se convergem diferentes discursos emprestados de várias disciplinas, escolas literárias ou determinados livros: história, arquitetura, botânica, geologia, a Bíblia, barroco, romantismo, épica e estratégia militar.

 

capa odisseia nos tropicosO senhor também é responsável pela apresentação do volume Euclides da Cunha – Uma Odisseia nos Trópicos. Em sua opinião, qual o diferencial e a importância dessa obra? É um título de interesse apenas para quem estuda o tema ou é uma obra de interesse geral, que pode ser entendida pelo grande público? Por que ela deve ser lida?

LMB: O trabalho biográfico executado por outro grande amigo, já falecido, o Prof. Frederic Amory, daqui da Califórnia, é um complemento a certas biografias em forma de livro mais antigas ou esboços biográficos de Euclides. Em primeiro lugar, refiro-me às biografias de Francisco Venâncio Filho, Eloy Pontes, Leandro Tocantins, Olímpio de Souza Andrade, Sylvio Rabello; em segundo, aos escritos de Oswaldo Galotti, Walnice Nogueira Galvão, José Carlos Barreto de Santana, Roberto Ventura e outros. O que diferencia a biografia de Amory dos textos biográficos escritos anteriormente a essa obra é a estrutura, o escopo e o ângulo da análise de Euclides da Cunha – Uma Odisseia nos Trópicos. Estruturalmente, o autor distribui os vários capítulos do livros, sempre em ordem cronológica, dando-lhes títulos sugestivos que emblematizam o ponto principal de cada momento histórico. “A Ponte e o Livro”, por exemplo, narra esse Euclides nos melhores momentos de sua atividade de engenheiro e homem de letras, às vésperas da publicação de Os Sertões. No que diz respeito ao escopo, o livro serve tanto para um iniciante quanto para um leitor mais familiarizado com Euclides. Quanto às análises ali oferecidas, deve-se mencionar a capacidade de erudição e de síntese do biógrafo, quando, por exemplo, ele se debruça sobre dois ensaios de Euclides: “O Primado do Pacífico” e “Estrelas Indecifráveis”. No primeiro, Amory resgata para nós o melhor de Euclides, a sua enorme curiosidade pela História das grandes civilizações e o seu método de arguir sempre criativo quando aplicado a um assunto contemporâneo a ele; no segundo, o crítico norte-americano demonstra o seu profundo conhecimento histórico da Idade Clássica greco-romana e das religiões, fazendo-nos ver ainda, mais uma vez, que é impossível desvincular ciência e arte no pensamento crítico de Euclides. Por não ser brasileiro, Amory lança um olhar distanciado sobre a vida do escritor fluminense, adotando uma perspectiva de alguém de fora da nossa cultura, o que criticamente resulta ser muito salutar neste caso. Os exemplos poderiam se multiplicar, mas este dois dão ao leitor uma ideia de como pela primeira vez os principais ensaios euclidianos foram abordados nas suas minúcias, utilizando-se de um instrumental de alta qualidade e de verdadeiro scholar.

 

Em sua opinião, o trabalho de Euclides da Cunha recebe, no Brasil, o valor devido? Por quê?

LMB: Acredito que sim, mesmo porque, salvo engano, ele é o autor que sustenta a mais extensa bibliografia crítica até hoje, mais extensa que a de Machado de Assis, para ficar com uma comparação. Mas, cuidado. Estamos vivendo um momento problemático e de crise da leitura. Euclides é uma “dor de cabeça muito gostosa”. Ele demanda paciência e releituras. Ele também nos fascina com a sua escrita ao mesmo tempo que nos provoca e nos desafia a pensar criticamente. Euclides nos convida ainda a raciocinarmos de forma lógica sem prejuízo da paixão que tenhamos pela arte e pela imaginação. Este é, a meu ver, o grande legado que ele nos deixou.

 

Como é a recepção da obra de Euclides da Cunha no exterior?

LMB: Eu não poderia falar senão de modo mais geral sobre este assunto,  já que não temos dados estatísticos ou comprovantes de leitura para o continente Europeu e Ásia, por exemplo. Portanto a minha opinião é bastante informal e se limita aos Estados Unidos, país onde moro e trabalho há 38 anos, e onde esses medidores existem. Infelizmente, Euclides da Cunha como tantos outros grandes escritores brasileiros não é um bestseller e assim é pouco lido nos Estados Unidos, sendo que aqueles que o leem são alunos e professores de nível universitário na sua grande maioria. Dentro deste círculo restrito de leitores, a obra de Euclides é bastante discutida e estudada e as produções acadêmicas (livros e artigos) vem comprovar este fato. O problema da recepção de Euclides no exterior não tem nada a ver com ele como tampouco estaria relacionado a quaisquer outros grandes autores. Tem a ver com uma política cultural que nunca se fez de forma eficiente no Brasil. Ao longo dos anos, as agências do governo brasileiro não têm investido inteligentemente neste aspecto e acredito que nem mesmo a Academia Brasileira de Letras tem feito algo duradouro para que as letras brasileiras sejam conhecidas e continuem sendo apreciadas lá fora.O problema não é só divulgar os autores numa feira como a de Frankfurt, por exemplo, ou algo parecido, mas de criar e manter um sistema de divulgação constante. Nessa política, se é que ainda existe hoje em dia, falta a continuidade, fato tão necessário para não desacelerar o momentum da divulgação e publicidade. A feira de livros termina e com ela se esfuma da memória os nomes dos nossos melhores escritores. Eis um assunto intrigante. O Brasil com uma respeitável literatura nacional que pode competir facilmente com a de outros países latino-americanos, lamentavelmente não possui um só caso de Prêmio Nobel. Em contrapartida a Guatemala possui um, Miguel Ángel Asturias; o Chile dois: Gabriela Mistral, amiga e contemporânea da grande Cecília Meireles, e Pablo Neruda; o México um, Octavio Paz; e o Peru também um, Mario Vargas Llosa. Com grande probabilidade, Carlos Drummond de Andrade ou Clarice Lispector poderiam ter recebido este prêmio se a visibilidade deles tivesse sido trabalhada de modo eficaz nos setores diplomáticos e culturais fora do Brasil.

 

2 Comentários


  1. Ateliê , quando que sairá uma nova tiragem da edição d’Os Sertões? Pois esta edição já não é encontrada em nenhuma livraria mais.

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