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Alfabetização e analfabetismo funcional

Ler é mais do que saber unir letras e sílabas; quem não consegue escrever, ler ou interpretar textos é considerado analfabeto funcional e perde a oportunidade de adquirir os conhecimentos que a leitura de um bom livro pode proporcionar e entender melhor o mundo ao seu redor

Antônio Suárez Abreu*

Antônio Suárez Abreu 2Houve época em que bastava alguém conseguir escrever o próprio nome para ser considerado alfabetizado. Assinar um documento, em vez de pôr nele a impressão digital, era sinal de progresso.  Há, ainda hoje, treze milhões de brasileiros que põem impressão digital no lugar do nome.  São os completamente analfabetos. Há, também, uma quantidade muito maior de brasileiros que, embora sejam capazes de escrever algo além do próprio nome e de ler anúncios publicitários, tropeçam de forma vergonhosa, quando têm de escrever ou ler um texto mais complexo.  São os chamados analfabetos funcionais.  Compõem mais da metade da população do país e ultrapassam, em número, aqueles que têm apenas o ensino fundamental. Muitos universitários não alcançam a efetiva competência em leitura e escrita e, quando formados, só conseguem acesso a subempregos. A quantidade de gente reprovada nos exames da OAB é um bom indicador dessa realidade.

Numa primeira etapa, alfabetizar-se não é apenas estabelecer relações entre letras, sons e palavras.  É, simultaneamente a isso, ser capaz de responder a duas demandas cognitivas: entender o significado de cada palavra e inseri-la em um papel sintático dentro da frase.  Quando uma criança lê sequências como A menina fechou a porta e Minha mãe carregou a menina, tem de compreender não apenas que menina é uma criança do sexo feminino, mas também que essa palavra tem a função de agente, na primeira frase, e de paciente, na segunda.  O nome técnico desse procedimento é parsing.  Por incrível que pareça, há até mesmo alunos de pós-graduação com baixa competência nessa habilidade.  A maior parte das redações de vestibular e até mesmo dissertações de mestrado e teses de doutorado apresentam frases truncadas e pontuação caótica.   Vejamos um trecho retirado de uma das redações do último Enem: A escola deve tratar do tema da violência contra a mulher.Educando os jovens para que aprendam que esse tipo de agressão não é normal e vendo a mulher como companheira.  Certamente a segunda oração deve fazer parte da anterior, ou seja, o ponto final deve ser substituído por uma vírgula: A escola deve tratar do tema da violência contra a mulher, educando os jovens para que aprendam que esse tipo de agressão não é normal e vendo a mulher como companheira.  Porém, como não é a escola que deve ver a mulher como companheira, mas os jovens que aprenderam isso na escola, o aluno poderia dar a esse período outra redação: A escola deve tratar do tema da violência contra a mulher, educando os jovens para que aprendam que esse tipo de agressão não é normal e aprendam a ver a mulher como companheira.

Essa competência em escrever se aprende com a tradicional análise sintática, hoje execrada pelos planos de ensino e dominada precariamente até mesmo pelos professores.  Fiz uma pesquisa informal na Unesp, entre os meus pouquíssimos alunos de Letras – sete ou oito por sala – que apresentavam escrita adequada e fluente: todos eles tinham tido aulas de análise sintática no ensino fundamental e médio.  O outros não sabiam sequer localizar um sujeito posposto e tiveram de aprender isso na Universidade.

colher de sopa de manteigaVamos, agora, à leitura.  Ao ler, vamos construindo o sentido do texto dentro de nossas cabeças, a partir das informações que temos arquivadas em nossa memória.   Ao ler uma simples frase como: Coloque uma colher de sopa de manteiga  numa tigela, temos de saber, antecipadamente, que não existe sopa de manteiga, que colheres de sopa, de sobremesa etc. são utilizadas para medir ingredientes na cozinha e que apenas a manteiga medida pela colher deve ser posta na tigela, e não a colher.   A leitura competente e fluente depende, pois, do nosso passado.   Aprender a ler, ter uma alfabetização completa implicam construir esse passado por meio de leituras acumuladas.   Isso vale tanto para o domínio do vocabulário quanto para outros como cultura, história, tecnologias.  Durante a primeira aula do curso de Economia de uma importante universidade pública paulista, o professor disse aos alunos que  essa ciência tem palavras com sentido diferente do uso comum e que os alunos não se acanhassem em perguntar quando não soubessem.  Imediatamente, um dos calouros levantou a mão e perguntou: “Professor o que significa debalde”?   O mestre teve de explicar o sentido desse advérbio a um aluno que, apesar de ter passado num vestibular concorrido, havia lido muito pouco.

Em alguns textos, a exigência desse conhecimento passado é muito maior.   Imagine alguém lendo um trecho do livro Autoengano, em que o economista e filósofo Eduardo Giannetti fala do autoengano dos amantes: “É como se estivessem fora de si – embriagados  por poções wagnerianas, hipnotizados pelo fascínio de Circe ou enfeitiçados  por encantamentos como o que, segundo a lenda, enlouqueceu Lucrécio.  Os apaixonados perdem o sono, dançam na chuva e ouvem estrelas.   Para entendê-lo plenamente, o leitor deve ter, em sua memória, o enredo  da ópera de WagnerTristão e Isolda, em que Tristão, inadvertidamente, bebe uma poção amorosa e se apaixona por Isolda, princesa que ele devia conduzir ao seu tio em matrimônio.

singingintherainDeve ter, também, em seu passado, a história de Ulisses, que foi enfeitiçado pela deusa Circe, em sua viagem de volta da Guerra de Troia, e a lenda segundo a qual Lucrécio, poeta romano, teria enlouquecido de amores e se suicidado.  Deve ter, ainda, em sua memória, o filme Cantando na Chuva, protagonizado por Gene Kelly e um dos mais famosos poemas da “Via Láctea” de Olavo Bilac: “Ora, direis, ouvir estrelas…”.

Concluindo, para não ser analfabeto funcional, é preciso ter o hábito da leitura como lazer, que é muito comum na Europa e nos Estados Unidos, mas extremamente raro no Brasil, em que a leitura per capita é calculada em rasos 1,7 livros por ano.

 

 

*Tem mestrado, doutorado e livre-docência pela USP, pós-doutorado pela UNICAMP, é professor titular de língua portuguesa da UNESP, membro da Academia Campinense de Letras e autor, entre outros, dos livros: Gramática Mínima para Domínio da Língua Padrão (Ateliê), O Design da Escrita (Ateliê) e Texto e gramática: uma integração funcional para a leitura e escrita (Melhoramentos).

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