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Para entender a sociedade de consumo

Carina Marcondes Ferreira Pedro fala sobre o recém-lançado Casas Importadoras de Santos e seus Agentes, sobre fluxos de importação de mercadorias nas últimas décadas do século XIX

Por Renata de Albuquerque

 

CarinaPedro_300dpiPor que entender o fluxo de importação de mercadorias no final do século XIX é importante na atualidade? Porque as tendências e os hábitos de consumo no Brasil foram fortemente marcados pelos acontecimentos desse período. Em Casas Importadoras de Santos e Seus Agentes, Carina Marcondes Ferreira Pedro debruça-se sobre o sistema e as rotas comerciais marítimas por meio das quais as mercadorias e produtos de consumo eram trazidos ao Brasil. O livro recém-lançado é resultante da dissertação de Mestrado desenvolvido no Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

 

Carina, que já atuou como professora de História e Ciências Sociais no ensino básico e orientadora educacional online no curso de especialização em História do Programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor/Unicamp), conta que sua pesquisa começou ainda em 2006, no período da graduação, quando realizou o projeto de iniciação científica em História da Cultura Material do Museu Paulista, como aluna do curso de História na FFLCH-USP. A seguir, ela fala sobre sua obra:

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Você diz que a história do consumo no Brasil foi pouco abordada em seus aspectos culturais. Dada a importância desse tema, a que você atribui essa lacuna? O que esse viés de pesquisa tem a nos ensinar?

Carina Marcondes Pedro: Os estudos sobre os aspectos culturais do consumo a que tivemos acesso foram produzidos, em sua maioria, nos países que dominavam a economia capitalista nos séculos XIX e XX, como Inglaterra e Estados Unidos, que, ao exportar artigos industrializados para o Brasil e outros países da América Latina, disseminavam seus valores e modelos culturais. No Brasil, encontramos estudos importantes da História Econômica que nos forneceram visões sobre o macroprocesso que envolvia as importações. A minha pesquisa buscou compreender, do ponto de vista da História Cultural, as novas relações comerciais estabelecidas entre a Província de São Paulo e os países industrializados no final do século XIX, a partir das casas importadoras, instaladas junto ao Porto de Santos, conjugando elementos que envolvem desde sua conformação física até a trajetória e dinâmica de seus agentes e os artigos que importam e comercializam. Essas firmas, em boa parte fundadas por estrangeiros, foram responsáveis por disseminar valores e práticas culturais, localmente associados aos diversos artigos estrangeiros que adentravam o país nesse período. Compreender esses aspectos é também entender a formação de uma sociedade de consumo que provocou uma ruptura com o passado ao procurar por novos referenciais.

 

O livro toma como base, entre outros assuntos, pesquisas relacionadas à história cultural do consumo, com seus hábitos materiais. O que você pode nos dizer sobre isso?

CMP: Os estudos da história cultural do consumo ajudam a compreender, entre outras questões, como se deu a disseminação de valores e modelos culturais dos países industrializados, a construção de redes de consumo e suas relações com a vida urbana, a distribuição de bens materiais e, finalmente, entender como se deu a transição de uma sociedade assentada sobre a estabilidade de artefatos para uma sociedade de consumo dinâmica. Nela, a palavra “novidade” torna-se comum nos anúncios de artigos importados, revelando as mudanças rápidas que aconteciam no final do século XIX. Na minha pesquisa, a problemática se voltou para a compreensão dos valores e práticas culturais implicados no sistema de comércio de importação de coisas materiais, papel de seus agentes, objetos que faziam circular e formas de comercializá-los na cidade de Santos.

 

Por que escolher o período do fim do século XIX e início do XX para ser objeto de pesquisa? Por que escolher São Paulo e não, por exemplo, o Rio de Janeiro, que era a capital do Brasil de então?

CMP: A passagem do século XIX para o XX é um momento de sensível mudança na Província de São Paulo. Foi nesse período que a circulação de mercadorias ganhou nova dinâmica com a expansão do comércio internacional, no caso de São Paulo, com a expansão da economia cafeeira. A cidade de Santos, como núcleo operacional de todo o sistema de exportações/importações desta região, também passa por transformações profundas com a construção da ferrovia São Paulo Railway (1867), o incremento do movimento portuário e a presença cada vez mais numerosa dos negociantes e firmas importadoras nas ruas do centro comercial, que são parte do próprio processo de crescimento e transformação do porto, como ponto central no circuito de distribuição dos produtos estrangeiros.

ilustração casas importadoras cap 1
Imagem que abre o primeiro capítulo do livro

De que forma essa história está ligada aoshábitos que mantemos atualmente? Sua pesquisa dá pistas, ou indica, as mudanças profundas pelas quais a economia, o comércio e as relações de consumo passaram ao longo do século XX e ainda estão passando neste início de século XXI?

CMP: No final do século XIX os comerciantes enxergaram a oportunidade de vender mais em datas específicas do calendário, como “Natal, Ano Bom e Reis”. O ato de presentear e se vestir com roupas novas nesses dias passa a ser valorizado. Hoje em dia vemos que este hábito se intensificou e passamos a ter muito mais datas comemorativas em que o consumo é estimulado. A exposição e a vitrine também são práticas comerciais que se desenvolveram no século XIX. O anúncio de uma loja que passa a ter “exposição permanente” nos revela que os objetos começam a ser organizados de modo a estimular a observação visual dos clientes, indicando uma preocupação crescente em despertar o desejo de consumo por meio desse sentido.

 

Que semelhanças e diferenças você enxerga no consumo da época tratada em sua obra e daquele praticado nos dias de hoje?

CMP: No que diz respeito ao comércio de artigos importados, percebo que a origem estrangeira do produto ainda é valorizada, especialmente, quando se trata de uma marca consolidada no mercado internacional. Naquele período, contudo, para muitos artigos, não tínhamos uma fabricação nacional – hoje temos essa opção. As casas comerciais de importados ainda possuem uma grande variedade de produtos, porém, diferentemente daquela época, há uma definição nítida do público-alvo, desde a conformação física da loja até as ações de marketing. Hoje, vemos marcas especializadas em vender um tipo de produto para um determinado grupo de consumidores.

 

Você diz ainda que os novos produtos eram introduzidos no cotidiano e passavam a participar das ações, hábitos e referências culturais das sociedades locais. Você pode dar alguns exemplos? Há alguma curiosidade que você descobriu durante as pesquisas, e que não imaginava existir ou funcionar da forma que funcionava?

CMP: Descobri durante a minha pesquisa uma variedade de objetos cada vez maior entrando pelo Porto de Santos, como pianos, candelabros, fogão, porcelanas, aparelhos telefônicos, que passaram a constituir materialmente os interiores residenciais e comerciais. Também fizeram parte dessa gama variada de importados diversos gêneros alimentícios, como vinhos, cervejas, conservas, temperos, e no que diz respeito ao vestuário, encontrei chinelos, roupa branca, chapéus, fitas, entre outros artigos. Uma das curiosidades que descobri foram os anúncios de bebidas importadas, que apareceram com o nome da marca ou selo do fabricante associado ao nome da casa importadora que trazia o artigo para o Brasil, apresentada como “únicos importadores na Província”. Esse apelo de exclusividade denunciava a existência de um comércio de produtos falsos ou similares ocorrendo no período. Entre as precauções que o consumidor podia tomar estava a identificação do importador no rótulo da bebida.

 

 

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