Permanente Mutação

Por: Renato Tardivo*

        Muito já se falou sobre a relação entre literatura e memória. Ora, a literatura é um dos registros por meio do qual deixamos o nosso legado às futuras gerações, e, reciprocamente, todo escritor se vale da memória para a criação de sua ambiência ficcional.



borda2  Literatura e Memória Política – Angola. Brasil. Moçambique. Portugal, coletânea organizada por Benjamin Abdala Junior e Rejane Vecchia Rocha e Silva, reúne ensaios sobre livros de autores da língua portuguesa, atentando justamente para a presença de aspectos históricos e políticos articulados à dimensão propriamente estética das obras.

Em “Da Certeza das Vidas Novas à História Real de um Amor Impossível”, Laura Cavalcanti Padilha apresenta um cuidadoso estudo sobre as obras dos angolanos Luandino Vieira e Pepetela, sustentando a tese de que ambos executam uma escrita para a liberdade, seja no período anterior à independência de Angola, seja nos dias de hoje, quando se ressignifica todo o derramamento de sangue e se ponderam as conquistas e limites trazidos pela revolução.

Na parte dedicada a escritores brasileiros, vale destacar o minucioso ensaio de Benjamin Abdala Junior – “Linguagem e Vida Social nos Romances de Graciliano Ramos”. Escreve o autor: “Formam-se, então, nos campos de atividades humanas dos romances de Graciliano Ramos, articulações hegemônicas que envolvem os objetos, uma rede opressiva que reproduz as articulações dominantes, que procura subordinar a si as demais, que vêm da experiência sociocultural” (p. 93). E conclui que as personagens nos romances de Graciliano são sujeitos históricos, e a forma com que o autor trabalha a linguagem convida o leitor a entrar na história e refleti-la de dentro.

Em “Escrita, História e Política em José Saramago”, Pedro Brum Santos discute a interface entre o literário e o social na obra do escritor português a partir do romance História do Cerco de Lisboa, livro em que ficção e história se encontram perfeitamente: “A ficção, de tal modo, busca responder ao desafio de compreender o passado não como um tempo acabado, mas como algo vivo em permanente mutação” (p. 283).

        A afirmação acima sobre o livro de Saramago pode se estender às demais obras analisadas na coletânea (são 15 ensaios no total). Do ponto de vista da psicanálise, memória envolve sempre, em maior ou menor grau, algo de traumático, uma vez que está associada a vivências que nos marcaram. Dessa perspectiva, passamos a vida ressignificando as experiências traumáticas, de modo a criar diferentes possibilidades de encaminhá-las. Esta é, em linhas muito gerais, a noção de temporalidade freudiana do après-coup, segundo a qual o vivido é ressignificado “depois do trauma”. Assim, a literatura não teria apenas a função de registrar a memória política de um período, senão de reeditá-la, mantê-la viva, “em permanente mutação”.

Conheça outras obras de Benjamin Abdala Jr. 

*Renato Tardivo é escritor, psicanalista, professor universitário e doutor em Psicologia Social pela USP. Publicou os livros de contos Do Avesso (Com-Arte/USP) e Silente (7Letras), e o ensaio de Porvir Que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê Editorial).

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