O Centenário de Triste Fim De Policarpo Quaresma (1915-2015)

José de Paula Ramos Jr.*

José De PaulaLima Barreto (1881-1922) entendia que o escritor tem compromisso com a realidade, devendo esforçar-se para revelar o que os simples fatos não dizem. A literatura deveria também cumprir um papel ético, contribuindo para melhorar a humanidade. Por isso, julgou necessário denunciar a hipocrisia, a intolerância, a ambição egoísta e a injustiça, que ele via na base da sociedade brasileira no tempo da então jovem república. Tinha da literatura uma visão militante e usou dela para expressar sua revolta, solidarizando-se com a gente humilde.

Entre os poucos livros publicados em vida do autor e vários outros póstumos, a crítica e a história da literatura brasileira distingue o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) como a obra-prima de Lima Barreto. Ele conta a história de um idealista, que dedica toda a sua vida ao Brasil e acaba condenado à morte, acusado de traição à pátria.

Policarpo Quaresma faz lembrar o otimismo do doutor Pangloss. Para essa personagem da sátira de Voltaire, este mundo é o melhor dos mundos possíveis; para o protagonista da sátira de Lima Barreto, o Brasil é o melhor dos mundos possíveis. E se não é, deveria ser, pois teria todas as condições favoráveis para isso, desde que o país e a nação se encontrassem com sua própria cultura. Assim pensando, ele lê e estuda todos os livros de sua vasta biblioteca, totalmente dedicada ao Brasil, até decidir pôr em prática as suas ideias, para espanto de vizinhos e amigos, para o deboche da imprensa e da população carioca, quando ele propõe ao Congresso Nacional um decreto que tornasse o tupi-guarani a língua oficial do Brasil, em desfavor da língua portuguesa, e para escândalo dos burocratas do Arsenal de Guerra, onde ocupava o cargo de subsecretário. A hostilidade dos colegas de trabalho e da chefia leva o ingênuo Quaresma ao delírio persecutório e ao manicômio, onde fica internado por seis meses. Ao sair, deprimido e aposentado, muda-se do bairro carioca de São Cristóvão para um sítio, em Curuzu, pouco distante do Rio de Janeiro.

Na roça, Quaresma recupera o antigo entusiasmo nacionalista, agora voltado à convicção de que o Brasil poderia tornar-se o celeiro do mundo. Dedica-se ao trabalho em sua propriedade rural com afinco, para decepcionar-se com a quebra de safra, por força do ataque de saúvas, com a peste que dizimara metade dos animais de criação, e com os magros resultados comerciais apurados, em decorrência dos custos de embalagem e transporte dos produtos, da especulação dos atravessadores e dos achaques fiscais. Chega à conclusão de que “tornava-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, […] espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador… Então sim! o celeiro surgiria e a pátria seria feliz”.

Quando tem notícia da Revolta da Armada (1893), que considera um movimento impatriótico, redige um memorial propondo profunda reforma da economia agrária do país e o entrega pessoalmente ao presidente da república, o marechal Floriano Peixoto, na ocasião em que se oferece como voluntário na luta contra os insurgentes. Quaresma, então, recebe a patente de major de artilharia, mediante o pagamento de vultosa quantia, mesmo sem nunca haver disparado um tiro.

Durante as refregas, Quaresma tem a oportunidade de encontrar Floriano Peixoto, que visitava o posto do major, e de perguntar sobre o memorial. Floriano responde que o havia lido e considerava as propostas como a obra inexequível de um “visionário”.

Decepcionado, Quaresma começa a questionar as qualidades do presidente:

Era pois para sustentar tal homem que deixava o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?

Vencidos, os marinheiros revoltosos são aprisionados. Quaresma é designado carcereiro, até ser preso e condenado à morte por uma carta escrita ao presidente, em que denunciava as injustiças e atrocidades cometidas contra prisioneiros, arbitrariamente fuzilados.

Eis aí o triste e irônico fim desse Dom Quixote carioca e, sobretudo, brasileiro cujo nome é um oximoro, pois “Policarpo” significa “muitos frutos” (do grego, “poli” + “karpós”), enquanto “Quaresma” é vocábulo que designa o período litúrgico cristão em que a vida se recolhe. Por dar tantos frutos em tempo estéril, o herói visionário sucumbe, vencido pela hipocrisia, pela mediocridade, pelos preconceitos, pelo egoísmo, pelo descaso com os interesses republicanos do país e de seu povo.

Há cem anos o romance se mantém atual.

O texto de Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado na coleção Clássicos Ateliê, foi estabelecido com base no da primeira edição da obra em livro (1915), lançada no Rio de Janeiro pela Revista dos Tribunais, em cotejo com o do segundo volume das Obras Completas de Lima Barreto, organizadas por Francisco de Assis Barbosa, Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença, em 1956, para a Editora Brasiliense, de São Paulo. A ortografia foi atualizada, segundo o Acordo Ortográfico vigente, mas mantida a pontuação original do autor. Obedecendo ao rigoroso padrão de qualidade da Ateliê Editorial, o volume traz uma ampla e lúcida apresentação crítica de Ivan Teixeira e notas ao romance, elaboradas por Gustavo B. Martins. As ilustrações artísticas foram executadas por Paulo Batista. Há, ainda, documentação iconográfica.

Ivan Teixeira (1950-2013) foi professor de Literatura Brasileira na ECA/ USP e na Universidade do Texas, em Austin. Escreveu, entre outros, Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica (EDUSP) e O Altar e o Trono: Dinâmica do Poder em O Alienista (Ateliê Editorial; Editora UNICAMP). Gustavo B. Martins é jornalista formado pela Universidade de São Paulo, autor de A Arca de Noésio e Fábulas para o Ano 2000 (ambos publicados pela Ateliê Editorial). Paulo Batista é designer gráfico, ilustrador e cartunista, tendo participado de revistas como Chiclete com Banana e Animal.

* Professor do curso de Editoração na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Entre outros, é autor do livro Leituras de Macunaíma: Primeira Onda (1928-1936), publicado pela parceria EDUSP-FAPESP, em 2012. Dirige a Coleção Clássicos Ateliê.

 

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