Poemas para serem lidos como partituras

Sérgio Medeiros Estado de São Paulo | Seção: Caderno 2 | Pág. C5 17 de fevereiro de 2015

Nas obras e criações visuais de Mallarmé e de Carl Andre, o diálogo entre a palavra com o branco da página

lance de dadosDois lançamentos recentes dedicados à poesia, Um Lance de Dados (bilíngue), de Stéphane Mallarmé, e Poems, de Carl Andre, trazem à tona a dimensão assumidamente experimental desse gênero de expressão, pois ambos os poetas apostam no diálogo da palavra com o branco da página, em exuberantes criações visuais.

Traduzido por Álvaro Faleiros, o poema de Mallarmé, de 1897, assume no prefácio que é “uma encenação espiritual exata” a que “faltam precedentes”, dando origem talvez à “quase uma arte”, em que o tema é o naufrágio. Essa obra-prima já havia sido traduzida nos anos 1970 por Haroldo de Campos, com quem o tradutor atual dialoga, concluindo que “a tradução haroldiana produz um texto ainda mais erudito e rebuscado do que o próprio texto mallarmeano”. O exemplo mais eloquente desse “preciosismo” talvez seja “chantar”, tradução de Campos para “imposer” (impor), termo corrente em francês.

Na tradução do prefácio que o próprio poeta escreveu já se percebem as diferenças entre as duas versões em língua portuguesa. A expressão “mise en scène”, por exemplo, se transforma em “cenografia”, na primeira versão brasileira, e em “encenação”, na segunda, e por isso merece um comentário de Faleiros, que conclui: “Não se trata mais de fazer da tradução uma arma de batalha contra um pretenso conservadorismo ou parnasianismo reinante, mas, sobretudo, fazer da tradução um instrumento de reflexão sobre o que está em jogo no ato de traduzir e no texto traduzido”.

Num ponto, porém, o trabalho de Faleiros poderá frustrar o leitor. Numa das páginas culminantes do poema lemos o verso: “Rien n’aura eu lieu que le lieu”, que alude, entre outras coisas, ao fracasso das palavras em preencher de sentido o vazio existencial. A tradução de Faleiros diz: “Nada terá tido o lugar senão o lugar”. A expressão vernácula é “ter lugar”, sem o artigo “o”, e significa “ter cabimento”, “caber”, “ser oportuno”. Ela também pode significar, embora isso seja considerado pelos puristas francesismo, ou galicismo, “acontecer”, e é nessa acepção, parece-me, que deveria ser usada na tradução do poema de Mallarmé. A tradução de Haroldo de Campos emprega “ter lugar” e não o inusitado “ter o lugar”. A versão portuguesa de Armando Silva Carvalho, de 2001, confirma a de Campos.

A presença do artigo “o” nessa frase vernácula não foi um casual erro de impressão, pois o tradutor, ao longo do ensaio que precede a sua versão, repete várias vezes a expressão “nada terá tido o lugar”, que esperamos possa ser devidamente explicada na próxima edição de Um Lance de Dados. Deve-se destacar, porém, que essa nova edição, conforme se lê na primeira orelha, “leva em conta as indicações de formato deixadas por Mallarmé”, cuidado que a tradução anterior não teria tomado.

Entre maio e agosto de 2014, no Museum zu Allerheiligen, de Schaffhausen, na Suíça, o escultor e poeta norte-americano Carl Andre expôs seus poemas visuais, que flertam com a tradição modernista iniciada por Mallarmé. Na ocasião, foi lançado o livro Poems, com uma expressiva amostra da produção textual desse mestre do minimalismo, ainda ativo. Durante muitos anos, os poemas de Andre ficaram à sombra das suas esculturas revolucionárias, mas, depois da publicação, em 2011, de Carl Andre: Things in Their Elements (Phaidon), de Alistairf Rider, ela começou a receber maior atenção dos leitores. Agora, com esse lançamento, seu universo verbal se expande e ganha vida própria, embora não se separe das esculturas.

Alguns poemas de Carl Andre são, de fato, esculturas verbais e aludem, por exemplo, à famosa obra A Coluna Infinita, de Constantin Brancusi, ao reproduzir na página, com o uso de letras apenas, uma sequência de formas romboidais que recria o perfil em zigue-zague da escultura do mestre romeno que ergueu, em Târgu Jiu, na Romênia, em 1937, uma coluna de quase 30 metros de altura, feita de módulos idênticos que se repetem. A noção de “sequência ininterrupta”, que é a repetição de uma forma básica, também aparece na série One Hundred Sonnets, de Andre: um quadrado (representando os versos de um soneto) repete-se em várias páginas, alterando-se apenas as letras que o compõem no primeiro soneto, apenas a letra “I”, que significa o pronome pessoal “eu” em inglês.

Há poemas sem letras, feitos de traços, e algumas colagens que recorrem à fotografia. Mas o que predomina é o uso de letras batidas à máquina (os poemas datam dos anos 1960) que criam formas geométricas na página – o que revelaria influência da poesia concreta, embora Andre só assuma explicitamente como mestres Gertrude Stein, Ezra Pound e William Carlos Williams. Talvez o poema mais mallarmeano do autor seja Flags, descrito por ele como “uma ópera para três vozes”, a qual pode ser lida, de fato, como uma partitura, exatamente como também Mallarmé desejava que o seu Um Lance de Dados fosse lido.

Conheça aqui a obra Um Lance de Dados, de Stéphane Mallarmé.

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