A Questão Filosófica do Erótico

Raphaelle Batista/Henrique Araújo O Povo | Seção: Vida & Arte | Pág. 5 25 de fevereiro de 2015

Na entrevista a seguir, a professora Eliane Moraes analisa a produção erótica brasileira e sua relação com a filosofia.

2502va0101
Pesquisadora Eliane Robert Moraes

Uma das mais importantes estudiosas brasileiras do chamado erótico literário, conceito elaborado a partir da pesquisa de autores como Marquês de Sade, Georges Bataille e Hilda Hilst, Eliane Robert Moraes é professora da Universidade de São Paulo (USP) e o primeiro grande nome a ministrar curso este ano no Espaço O POVO de Cultura e Arte. Nesta sexta, 27, e sábado, 28, ela discutirá “Erotismo, ficção e filosofia”. Na entrevista a seguir, concedida por email, Eliane discute temas de seu curso, como o fenômeno Cinquenta Tons de Cinza, analisa a produção erótica brasileira e discute a relação entre o erótico, a literatura e a filosofia.

O POVO – Cinquenta Tons de Cinza virou best-seller e foi mote para outros livros na mesma linha, com qualidade literária igualmente duvidosa. Agora, inspira um filme. Como a senhora vê a pasteurização do erotismo em obras desse tipo?

Eliane Robert Moraes – O sucesso de Cinquenta Tons de Cinza e de seus congêneres coloca questões de fundo que demandam reflexão. Não se trata de discutir se o livro tem ou não algum valor literário. Para se confirmar a baixa qualidade do texto, basta ler um ou dois parágrafos do romance e pronto. O curioso, porém, é que tal evidência não reduz o título a um mero problema sociológico, como acontece com a maior parte dos best-sellers. O fato de se concentrar na encenação de fantasias sexuais e, mais ainda, de explorar o delicado limiar entre o prazer e a dor, faz desse livro um caso especial, acrescido da novidade de que seu público é formado quase que exclusivamente por mulheres. Os números não surpreendem quando se leva em conta tal gênero de leitura. Lançado em 2011, o “mummy porn”, como foi logo batizado, se tornou um fenômeno editorial, ostentando cifras de tirar o fôlego. A esse balanço seguem-se as hipérboles de praxe: os inabaláveis lugares de honra nas listas dos best-sellers, uma enormidade de seguidores no Facebook, dezenas de imitadores, um quadro fixo num dos programas mais populares da TV americana, os direitos de filmagem comprados por 5 milhões de dólares e, obviamente, a exploração da “marca” em uma infinidade de produtos que enchem tanto as prateleiras das sex-shops quanto as dos supermercados. Efetivamente, o domínio aqui é o do excesso. Engana-se, porém, quem associar o excesso das cifras mercadológicas ao excesso sexual que se reconhece como a pedra de toque dos grandes títulos do erotismo literário. Nada a ver um com o outro. Nada a ver, portanto, a criação de E L James com aquela literatura erótica perturbadora, que produz em nós um imperioso deslocamento sensível e mental. Aliás, é bem outra a visada do best-seller da hora que, recorrendo a todo tipo de clichês, não tira nada, nem ninguém, do lugar.

OP – A que anseios esse tipo de livro responde, então?

Eliane – O sucesso dos “soft porns” responde aos anseios de uma época em que certa ideia de marginalidade perdeu seu poder de fogo e igualmente seu glamour. Cultivado por muitos escritores que se dedicaram à erótica literária – de Jean Genet a Henry Miller, de Bukowski a Roberto Piva –, o desejo de estar à margem da sociedade, de ficar fora do “sistema”, parece reunir cada vez menos adeptos. O marginal, vestido de bom moço, vem cedendo lugar ao excluído e, ao invés da transgressão, o que ele reivindica agora é sua inclusão. Desnecessário dizer que, uma vez “incluído”, o sexo fica esvaziado da sua capacidade de perturbação e do seu poder de desvio. O que sobra é uma sexualidade conformada às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. Eis a promessa do casal Christian e Anastasia (protagonistas de Cinquenta Tons de Cinza): perfeitamente adaptados ao jogo dos papéis sociais, eles reiteram os apelos sexuais que não cessam de nos assediar, oferecendo um repertório fechado e pronto de fantasias, que funciona como um fast food do sexo.

OP – A recente antologia Pornô Chic (Biblioteca Azul), na qual a senhora assina uma crítica, reúne os principais textos eróticos de Hilda Hilst; Reinaldo Moraes lançou agora O Cheirinho do Amor, em que também explora o erotismo. O erotismo tem sido revigorado como tema literário ou tem sido mais ‘bem visto’ pelo mercado editorial?

Eliane – Mais que um fenômeno do mercado editorial, talvez estejamos diante de um fenômeno “de mercado”, no sentido mais amplo. Creio que a proliferação de imagens sexuais que a indústria cultural vem colocando em circulação no Brasil nas últimas décadas, condenando o erotismo à plena visibilidade, trabalha no sentido de neutralizar a vocação subversiva que sempre caracterizou a literatura erótica. Banalizada ao extremo pela cultura de massa, a temática sexual tornou-se objeto de suspeita por parte dos circuitos literários mais cultos, atraindo apenas alguns escritores pouco assimilados pelo sistema cultural do país. Essa talvez seja uma via produtiva para se repensar as intrincadas relações entre estética, moral e erotismo que, no Brasil contemporâneo, parecem oscilar entre o viés repressivo da liberação sexual promovida pelo mercado e o moralismo dissimulado de boa parcela da elite bem pensante. Entre esses polos da cultura nacional existem, por certo, relações mais tensas e complexas do que normalmente se costuma admitir – o que mereceria uma exploração atenta, sobretudo agora que autores mais institucionalizados e escritores da cultura de massa começaram a explorar o veio do erotismo, indicando uma virada nesse cenário. Virada razoavelmente recente, inaugurada em 1999 por João Ubaldo Ribeiro que estreou no gênero com A Casa dos Budas Ditosos, seguido de Rubem Fonseca, cujo Diário de um Descenino foi publicado em 2003, ano que também marcou a primeira incursão de Paulo Coelho no tema, com Onze Minutos. Soma-se a esses títulos o surpreendente número de obras tangenciando o sexo que vem sendo editadas atualmente no País, incluindo traduções, quadrinhos e outros quetais. Para ficar apenas em alguns exemplos da produção nacional, vale citar títulos como Tesão e Prazer (Luiz Alberto Mendes) ou Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias (Xico Sá), sem esquecer o livro de Bruna Surfistinha que se tornou um fenômeno comercial. Mas, em meio a isso, há também lançamentos importantes de autores de alta qualidade literária como os citados Hilda Hilst e Reinaldo Moraes… A lista não se limita a esses poucos exemplos e, dada sua diversidade, é prudente tratá-la como um fenômeno sensível e mercadológico que ainda carece de avaliação mais rigorosa.

OP – Como o erotismo, a filosofia e a ficção, palavras que resumem seu curso no Espaço O POVO de Cultura e Arte, se encontram, dialogam e reverberam na contemporaneidade?

Eliane – Gosto de citar a escritora e ensaísta americana Susan Sontag, que caracteriza a “imaginação pornográfica” como uma forma particular de consciência que transcende as esferas sociais e psicológicas. A ficção erótica, diz ela, aciona estados extremos do sentimento e da consciência humana, visando desorientar o sujeito, deslocá-lo mental e fisicamente. Por isso os textos obscenos, incluindo os contemporâneos, seriam portadores de um certo princípio de conversão do leitor, semelhante ao que encontramos nas literaturas de cunho eminentemente religioso. Se concordarmos com ela, fica impossível falar de ficção erótica simplesmente como gênero literário, pois o projeto de conversão suposto na sua leitura se imporia a qualquer convenção ou norma literária. Então, só se pode definir o erotismo como campo que coloca um problema estético particular, na medida em que privilegia as formas do excesso e, assim, viabiliza a passagem de uma consciência “social” para outra, perturbadora. Diríamos ainda mais: um campo do conhecimento que coloca uma questão filosófica maior, posto que abre ao pensamento a possibilidade contínua de alargar a escala humana para além da vida em sociedade. O repertório de subtemas que o erotismo literário aciona – bestialização, violência, perda de si no outro, etc., seja de forma trágica ou cômica, aponta para essa constante problematização da noção de homem e de humanidade. Não é pouco, pois, o que a fantasia erótica tem a oferecer para a filosofia: sob o ardiloso disfarce da ficção, ela guarda uma memória antiga, a nos lembrar que os excessos do cogito têm relações intensas com as pulsões do corpo.

A autora Eliane Robert Moraes está organizando a Antologia da Poesia Erótica Brasileira, que será publicada pela Ateliê Editorial nesse ano.

Confira aqui o texto original.

 

Deixe uma resposta