CAIXA PRETA DOS BLACK BLOCKS

Questão 3 – Como você articula os levantes de Junho/2013 e os movimentos Black Blocks com as tensões sócio-políticas estabelecidas entre interesses privados (ou particulares) e necessidades coletivas? Justifique sua resposta. (5 linhas)

Naldinho levanta a mão: Num intendi, psô. Não entendeu o que? Essa pergunta aqui. Num intendi nada. Que levante de Junho? Que isso aqui? Aponta pro termo estrangeiro. São os protestos que acompanharam e ainda acompanham as greves do transporte público, lembra? Já viu no jornal, os Black Blocks? Isso aí é purque é de preto, né? Já querem falá que a culpa é dos preto? (o professor se constrange): Não. O movimento é diversificado, tem todo tipo de gente. A questão é o procedimento de confronto. Falam muito em vandalismo, depredação. Ah, mas tem que ir pro arregaço mêmo, tio. Tá loko? Essas loja de playboy, carrão de madame e esses puliça ducarái têm mais é que sifudê. Beleza. Tenta articular essas ideias no papel, agora. Lembra daquilo que a gente conversou sobre esferas pública e privada. Diferenças entre interesses e necessidades. Podexá, psô. Tá firmão.

O professor de sociologia, marxista com antigo caso tórrido de paixão juvenil por Bakunin e Dead Kennedys não foi poupado de sentir-se idiota ao corrigir suas provas nos dias seguintes. Sentir-se, sim, mas sobretudo reconhecer-se: tolo. E nesse estado de graça foi que aprendeu com seus rudes estudantes. Percebeu sua tolice em imaginar que a razão e coerência filosófica da ontopositividade da política imperam num ambiente saturado de gás lacrimogêneo. Sentia-se sobretudo um engodo. Um charlatão enganador, porque mesmo aprendendo tanto com esses maloqueiros iluminados, ainda era ele quem aplicava a prova. Enfim, a lição que ele tomou, não teve lousa nem boletim pra registrar, então virou desabafo em mesa de bar. Entre uma cerveja e outra, mastigando um churrasquinho de espeto, ele contava aos amigos o que aprendera. Elaborando a experiência como quem descreve um trauma. Ora com sarcasmo, era ridicularizado pelos colegas, ora armado de uma estranha dignidade em extinção vinda de não se sabe onde e absolutamente injustificada, esse professor anônimo narrou na mesa ao lado o que eu, me “fingindo” de velho estranho calhei de testemunhar, então meti minha cara de poeta decadente solitário com quem ninguém quer falar e tratei de prestar muita atenção. Invisível como operário de subemprego. Em guardanapos, fui registrando notas aqui e acolá, que somadas a minha própria experiência temperada com balas de borracha e spray de pimenta, resultaram no ensaio que se segue.

CAIXA PRETA DOS BLACK BLOCKS

Na real é bem simples.

Uma onda de manifestações autônomas tomou as ruas e desde então tem sido usadas como argila, moldadas em personagens exóticos, os tão desejados pelo inconsciente coletivo particularizado “monstros da vida real” (ELES EXISTEM! THEY LIVE!).  Perigosíssimos, esses amigos imaginários do Estado tomam vida a partir do barro – imagens – de Junho & então, somado a evocações antigas tais como “vândalos!”, “baderneiros!”, “delinquentes!” vão eletrocutando-se num monstro vivo real à medida que mais e mais pessoas engrossam o coro anti-vândalos-baderneiros-delinquentes.

E a justa besta fera travestida de cidadão deixa escorrer da sua boca a saliva do desejo pelo inimigo, pois a cidadania, tal qual o nacionalismo, se não necessita de um inimigo – o outro – estrangeiro – preto – bárbaro – pra existir, no mínimo admite que sua presença e subsequente ameaça vai bem pra alimentar os plenos vapores do projeto ao qual sustenta sua “defesa”. O defensor, então, tão logo percebe-se ileso de ameaças, tornar-se-á agressor afim de não perder seu propósito. Esse fenômeno foi debatido por círculos de estudo e interpretação neomitosófica aplicada, como o paradoxo de Zod & Jor-El.

É precisamente esse o motivo tão importante de atentar para o que efetivamente é uma manifestação Black Block. Em primeiro lugar, a configuração dos blackblocks é tática; ou seja, ela só se efetiva em confronto direto com a autoridade. Black Blocks não possuem bandeira comum, nem lemas fundamentais, nem ideias diretoras, são indivíduos autonomistas que em comum possuem algum anarquismo antipartidário, uma ardente indignação com o proto-fascismo comportamental somados a um grande apetite para a ação. Estarão dispostos ao combate direto e manifestam-se necessariamente em sociedades repressoras, predisposição à violência no trato com levantes sociais – perfil no qual o Brasil – lamentavelmente – enquadra-se com veemência.

Em muitas situações de conflito popular com tropas de choque e contenção violenta, é provável que a maior parte dos civis esteja vivendo aquela experiência pela primeira vez na vida. Os mais experientes destacam-se e ocultam-se muito rápido. Se para essas pessoas a experiência será relevante, engrandecedora, valorosa enquanto ensinamento ou mesmo segura, isso só dependerá de quem estiver junto na hora. Lado a lado. Jogando de volta as bombas de fumaça, puxando um irmão pego das garras mecânicas do autômato fardado. Resistindo ou atacando, deixando sua marca ou batendo em retirada. Muito dessa tática é intuitiva e empática e isso certamente contribui para que seja uma experiência atraente e excitante do ponto de vista humano.

Então, quando militantes de esquerda começam a papagaiar sobre os BBs nos sites e jornais como se BB fosse sempre majoritariamente o mesmo grupo, só atesta sua ignorância, incapaz de realmente visualizar a possibilidade de grandes interações humanas desprovidas de qualquer tipo de hierarquia, mesmo nas esferas micro-psicológicas de querer enxergar no outro ou em si um líder ideal; e pior, o faz reproduzindo o discurso da mídia burguesa que tanto critica.

É certo também, vale a pena ressaltar, que um manifestante blackblock está lá para a ação: O confronto com a polícia ou segurança particular, o ataque à estrutura material de agências corporativistas, a defesa e organização de uma massa manifesta de pessoas a fim de protestar, pessoas fartas, descontentes e ultrajadas. Esse tipo de ação não opera no campo das palavras. Nenhuma manifestação BB jamais estará acompanhada de palanque e carro de som. Ficar gritando num micro ou megafone não é considerado ação política para os Black Blocks. Talvez por isso a esquerda partidária tradicionalista se ressinta tanto do movimento. O choque estético entre essas esquerdas é essencial, mas cada qual pode balizar sua essência segundo a colaboração e em parceria dialógica, convergindo essências diferentes em uma mesma estrutura. Isso se houver empatia, sensibilidade e fraternidade entre os insurrectos.

Não vou avaliar a velha rotina de bradar convicções ideológicas no megafone, terminando suas sentenças com “companheiros” em tom cada vez mais agressivo até que estoure o quebra pau com a tropa de choque. Todos que escolheram o caminho da luta e da resistência sabem o quanto é preciso criatividade e beleza pra sobreviver nessa vereda. Agora atribuir aos Black Blocks uma personalidade, uma intenção ou um projeto é muita ingenuidade – ou – do absoluto contrário – faz assumidamente parte do coro que cria o algoz do povo. O terrorista; o subversivo; o homo saccer; criminosos.

Black Blocks são apenas uma das muitas manifestações violentas que insurgirão perante um estado violento. Quase como um sistema imunológico social, representa uma consciência viva de que SE SABE quem é o inimigo. Empresas multibilionárias, corporações arquibilhardárias, a mídia e sobretudo o Estado serão hostilizados enquanto persistirem segundo seu plano hostil de planificação das vidas, rotinas e topografias. Há de se distinguir violência política de violência criminal. A ampliação de direitos já não é negociável quando direitos já conquistados sofrem plena subtração. Black Blocks são glóbulos brancos sociais. E a todo tempo, tudo o que é produzido, feito, dito, está passível de apropriação pelo inimigo, tornado matéria prima do monstro da vida real – o blackblock Frankenstein, o vilão que todos (coxinha) amam odiar. Desprezam o pus, por achar nojento e mal cheiroso, ignorando que aquilo cura as suas feridas.

Por isso é urgente mergulhar na onda emergente. Estar atento é no compa, no truta lado a lado, e não no discurso que se faz sobre no jornaleco/blog ou o que quer que seja… pelo menos não no que diz respeito aos Black Blocks. Talvez você esteja afim de dizer que esses moleques inconsequentes podem também ser joguete de uma direita ardilosa, ou colocar negociações sindicais em risco. Podem mesmo. E a probabilidade que sejam é maior se você não estiver junto dele, atento, lado a lado… Se aprende muito nessas manifestações, de política e de empatia. E como em todo aprendizado, o maior risco é achar que já sabe tudo o que tá pegando. Serviços públicos dignos, segurança desmilitarizada, economia sustentável… essas são premissas tão básicas quanto alienígenas em nosso contexto. Utopias pelas quais lutar. Mas nosso contexto é o da ignorância desejada, do protofascismo a flor da pele, da servidão voluntária e da miséria multidimensional. Considerando esse panorama, um moleque inconsequente de molotov na mão ainda me parece algo que me toca mais esperanças do que frustrações.

Frustrações são o campo e a recompensa de quem planeja a ordem prum mundo feito de caos. Há quem flerte com as tensões desse mundo. Os tais jogos de poder: Seu acúmulo e preservação sempre estarão sob o jugo da administração dessas tensões e subsequente gerenciamento das inevitáveis frustrações. Agora há também quem só queira saber de gozar do poder. Usufruí-lo na hora, feito caldo de cana. Do desejo de voz o grito. Da vontade de expressão o pixo. Da necessidade de ação a disposição, a rua, o conflito. Bem simples.

Que defendam o patrimônio do burguês a burguesia e seus cães. Que reproduzam as ideias da classe média resmungante seus falantes, perdidos, desintonizados só satisfazendo-se, que vivem a toa pra se ver por aí. Toda vida, do nascimento ao epitáfio, sendo pouco mais que uma sucessão de selfies quase sem fim.

Pros que querem gozar a pouca liberdade que lhes é constantemente subtraída, a dança caótica com o asfalto, a correria na 24 de Maio, a gargalhada no outro lado do escudo transparente erguido pelo soldado. E absolutamente nenhuma promessa de dignidade ou redenção, na certeza equivocada de que estará errado. Estará mesmo. Presses, toda força.

A vida está cheia de gente querendo um monte de coisas diferentes. Uns querem controlar tudo e todos. Outros querem a anarquia, simplesmente. É certo que toda manifestação de rebeldia indica no mínimo uma intenção de autonomia. Todavia a moda dessa temporada é a força bruta e num ambiente de fardas e armaduras pretas, cassetetes, armas e botinas pretas, não é de admirar-se que capuzes pretos também surjam. Se esse impulso será emancipador, se resistirá em seu caráter insurrecto ou engrossará as filas dos fascistas, depende do tino de cada um e do que cada qual espera da vida. E pra saber, só pessoalmente, sacumé? Tem que estudar um pouquinho antes de falar. “Empatia, empatia como você se sentiria”. Simples assim.

Como em Seattle, os Black Blocks trouxeram às ações a energia estratégica, da criatividade e da coragem, mas têm além disso manifestado uma grande vontade de respeitar as aspirações de outros participantes e não cessam de defender ativamente as pessoas menos preparadas” (Michael Albert, no Znet Commentary, acessado em 16 de Abril de 2000).

É fácil reduzir o “fenômeno” Black Block a algumas práticas que parecem tanto mais ridículas e limitadas quanto a frequência em que são caricaturadas. As ações Black Blocks não se limitam a uma destruição sistemática e sem objetivo. Olhando mais de perto ele parecerá, ao contrário, como um modo de organização e de ação política que encontra seus fundamentos numa análise crítica de militância de extrema-esquerda, e que pode lhe acrescentar bastante.” – Darkveggy

Alguém nos perguntou: “você acha que assim você passa sua mensagem?” Eu gostaria de saber que mensagem teria sido esta. Só podemos falar por nós mesmos enquanto quatro indivíduos participantes no Black Block (muitos do Black Block achavam que estavam enviando uma mensagem), mas para nós, nós não éramos uma mensagem. Apenas estávamos lá.” – Antibody, Spazz, Sketch & Entropy do Black Block D2KLA em BLACK BLOCK DE LOS ANGELES: UMA CARTA DE QUATRO PESSOAS QUE ESTIVERAM NO BLACK BLOCK.

Todas as citações retiradas do DOSSIÊ ANTIGLOBALIZAÇÃO/EUA – BLACK BLOCK: NO SINGULAR OU NO PLURAL… MAS DO QUE SE TRATA ENTÃO?; publicado no Brasil em 2002, pela Editora Conrad na compilação URGÊNCIA DAS RUAS, Black Block, reclaim the streets e os dias de ação global. Ned Ludd (org.).

 

revolução

 

Conheça também a obra Edição e Revolução: Leituras Comunistas no Brasil e na França

 

 

Tiago Abreu é historiador  formado pela PUC-SP e trabalha como educador de todas as áreas das ciências humanas. Desde 2004 coordena e participa do coletivo de arte e grupo de estudos NeoMitoSofia , que tem por objetivo interelacionar histórias em quadrinhos e diversos desdobramentos da arte contemporânea com a filosofia. Atualmente também tem atuado como colaborador da Revista Córrego, como escritor de crônicas, artigos e poesias.

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